Em Maio, foi eleita coordenadora do ciTechCare – Centro de Inovação em Tecnologias e Cuidados de Saúde. O que é o ciTechCare e como é que ele se integra na orgânica do Politécnico de Leiria?
É uma unidade de investigação do Politécnico de Leiria na área da Saúde, conjugada com a da tecnologia. Precisamos da área tecnológica para resolver problemas relacionados com dados, com equipamentos, com dispositivos, com monitorização dos doentes e com testes. Recentemente, com a Covid-19, foi evidente o défice que tínhamos para dar resposta atempada à questão dos testes. Foi graças à comunidade científica que conseguimos aumentar exponencialmente, a nossa capacidade de testes. Antes do ciTechCare, a Escola Superior de Saúde de Leiria (Esslei) tinha uma unidade de investigação em Saúde, que não era financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, e era muito focada na promoção da Saúde e da prestação de cuidados na área da Enfermagem, mas, com o seu crescimento, sentiu-se a necessidade de aumentar a dimensão da investigação. Criámos um projecto novo, onde conseguimos envolver o Centro Hospitalar de Leiria e a ARS Centro, que são nossos parceiros institucionais, com membros do Politécnico de Leiria e um membro doutorado de uma empresa do sector alimentar. A ideia é juntar os doutorados e colaboradores destas quatro instituições para criar um projecto diferenciador para melhorar a investigação na área da Saúde, aliada à componente tecnológica. Queremos que seja essencialmente focada na promoção da Saúde, no cuidado do doente e acompanhamento da doença crónica, na aposta em projectos de inovação associados à indústria, começando com a alimentar, uma vez que um dos nossos parceiros estratégicos é desse sector. Pretendemos ainda apostar numa área nova que se chama Clinical Engineering, ligada à Engenharia de Sensores e monitorização de dados em Saúde. Apresentámos o projecto à FCT e, a 13 de Maio de 2019, fomos avaliados por um painel internacional. Tivemos 12 pontos em 15 possíveis; uma excelente nota. Obtivemos um financiamento de quase meio milhão de euros para equipamento, para pagar a bolseiros de doutoramento – iremos ter quatro bolsas de doutoramento na área das Ciências da Saúde para estudantes que queiram trabalhar connosco.
Quem irá conceder esse grau?
Nalguns casos terá de ser concedido por universidades, uma vez que o Politécnico, apesar de ter celebrado um acordo que permite fazer doutoramentos em conjunto com universidades irlandesas, ainda não o pode atribuir a solo. Porém, para o processo de avaliação do ciTechCare, tudo isso foi negociado com a Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa – a Nova Medical School -, com a Faculdade de Ciências da Alimentação e Nutrição da Universidade do Porto e com a Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova. Já temos, inclusivamente, bolseiros a trabalhar aqui connosco, no âmbito desses protocolos. Vamos iniciar o processo de aquisição de equipamentos, para, em Setembro/Outubro, arrancarmos com o trabalho. E já temos uma série de projectos a decorrer nas áreas da reabilitação respiratória, da microbiologia e microbioma para doentes celíacos, do diagnóstico precoce para a diabetes mellitus, da promoção da saúde e actividade física – o projecto Movida, que teve um impacto directo na cidade de Leiria com a criação de uma aplicação, com estações espalhadas pelo Polis. Teremos ainda projectos na área do cuidador informal. São iniciativas para melhorar a comunidade, mas também é investigação. É pesquisa inovadora nunca testada, daí que precisemos sempre de uma fase de investigação clínica, onde comparamos as nossas ideias e propostas com o que já existe. No final, faz-se um estudo comparativo do produto ou serviço que criámos, para aferir se vale a pena o investimento. É uma unidade de investigação muito aplicada, diferente daquilo que vem nos livros e que procura dar respostas a problemas que vão surgindo no terreno.
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Leiria está longe dos grandes centros…
A professora Carmo Fonseca, directora do Instituto de Medicina Molecular, visitou-nos, convidada pelo CHL, onde integro o Centro de Investigação do CHL, para discutir connosco caminhos a traçar, como, aliás, tem acontecido com outros cientistas. E disse-nos: “têm aqui um ecossistema inacreditável: têm os investigadores, os profissionais de saúde e têm a indústria. Podem pensar uma ideia, desenhá-la e fazê-la. Não precisam de andar a correr para a China ou para outro sítio. Quem me dera, em Lisboa, ter uma ideia e, depois, ter onde ir bater para a desenvolver.” Temos de aproveitar esta maior sensibilização da nossa indústria regional e local para o sector da Saúde e para explorar o seu potencial… Muito do que usamos na Saúde, é de plástico ou de outros polímeros. Temos aqui uma rede já montada! O Politécnico tem uma forte ligação com a indústria que pode ser aproveitada para a aproximar do hospital e dos centros de saúde. Não podemos ignorar a realidade da nossa região e a nossa tradição na indústria dos moldes e dos plásticos.
É um projecto a médio prazo?
A dez anos. É uma integração em rede do Politécnico de Leiria e o seu saber- -fazer nas áreas da Saúde, das Tecnologias e do Design. Vamos precisar muito de estudar ergonomia e a forma como as coisas são desenvolvidas. Temos já muitas competências na área do Design com a ESAD.CR, que recebeu pessoas que trabalharam em Design para a Saúde e que têm experiência colhida no estrangeiro. O ciTechCare, o CDRSP e os centros de design do Politécnico, as instituições de saúde – o CHL, a ARS Centro e empresas do foro privado – serão partes importantes desta rede. Temos de apresentar projectos de ideias inovadoras às empresas e cativá-las, mas o contrário também tem de acontecer. Elas podem sentir uma nova necessidade e virem ter connosco. O know-how que temos pode ser útil para as organizações da região conseguirem enfrentar a crise que aí vem. Esta é, em simultâneo, uma situação terrível e uma oportunidade para juntar forças de áreas distintas, com um objectivo comum. Todos os dias recebemos contactos para saber a nossa opinião e ideias para resolvermos problemas de saúde primária. A 13 de Maio de 2020, lançámos a página de Facebook do ciTechCare, para celebrar um ano após a avaliação internacional e desde daí, já recebi contactos de investigadores, na área da Saúde, que trabalham em Lisboa e no Porto, e que são de Leiria, a indagar a possibilidade de regressarem e virem trabalhar para aqui. Com a ligação à indústria da região, poderemos, na área da Saúde, criar emprego sofisticado e diferenciado para estas pessoas altamente especializadas, que trabalham lá fora e são considerados das melhores do Mundo.
Perfil
Maria Pedro Guarino, 43 anos, foi eleita em Maio coordenadora do ciTechCare – Centro de Inovação em Tecnologias e Cuidados de Saúde, do Politécnico de Leiria.
É também docente na Escola Superior de Saúde no mesmo estabelecimento de ensino superior e doutorada em Fisiologia, pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.
Publicou vários estudos científicos em revistas nacionais e internacionais, foi investigadora responsável de projectos financiados e orientadora de vários alunos pós-graduados.
A sua área do interesse é a neuromodulação e avaliação de biossinais fisiológicos e fisiopatológicos, aplicados às doenças metabólicas e à diabetes em particular. Integra o Centro de Investigação do Centro Hospital de Leiria.
A proximidade física ao Hospital de Santo André, de Leiria, é uma mais-valia?
Sim, é. Temos, cada vez mais médicos e enfermeiros a virem ter connosco e a dizerem que se apercebem, na prática clínica, de coisas diferentes daquelas que vêm nos livros. Querem perceber se, realmente, é uma característica apenas dos doentes da região ou se é uma coisa nova. Querem saber como desenhar um protocolo para o fazer. Acontece na área dos biomarcadores e análises ao sangue, para a busca de proteínas e modificações que sejam características da região. Temos tido muita procura e é uma área onde gostaríamos de apostar. Por exemplo, na questão dos anticorpos da Covid- 19, se já tivéssemos optimizado e a funcionar um laboratório de biomarcadores poderíamos, quando era mais crítico, fazer as análises serológicas para tentar perceber como se iria comportar a imunidade. A nossa experiência com coronavírus antigos como o SARS-CoV-1 ou o MERS mostram que eles têm uma resposta imunológica muito marcada nos primeiros dias de infecção, mas que, ao fim de cinco a 30 meses, os anticorpos desaparecem. Não sabemos como este se irá comportar e era importante termos feito, desde o início, o doseamento de anticorpos, para tentar perceber como isso acontece. Somos financiados por dinheiros públicos e é fundamental que os investigadores tenham noção dessa responsabilidade. A nossa ciência tem de estar voltada para servir a comunidade. A ciência aplicada, numa instituição politécnica tem de ser prioritária.
Não estamos livres de voltarmos a ter de lidar com um vírus mais agressivo
“Regiões fora de Lisboa, vão ganhar habitantes com o teletrabalho”
Em 2018, foi uma das investigadoras responsáveis pela descoberta de um método que pode controlar a diabetes mellitus tipo 2, através de um dispositivo bioelectrónico. Como se controla uma doença como esta através de impulsos eléctricos?
São os chamados electrocêuticos. É uma abordagem diferente, utilizando dispositivos electrónicos para tratar doenças. Esse projecto é liderado pela Sílvia Conde, da Nova Medical School, investigadora no Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Universidade Nova, onde trabalhei também durante anos. Tudo começou quando terminei o doutoramento em Doenças Metabólicas e quis mudar de área. A Sílvia trabalhava em controlo da respiração… tinha estudado dois órgãos que temos na bifurcação das carótidas, que são neurónios modificados e que se chamam corpos carotídeos (Carotid Bodies ou CB, em inglês). Sentem a variação dos gases no sangue e enviam essa informação ao cérebro que a reencaminha para os pulmões e coração para que adaptem a frequência cardíaca e respiratória às necessidades do organismo. Se subirmos uma montanha, com o ar mais rarefeito, o cérebro envia [LER_MAIS]uma ordem para aumentar a ventilação. Quando terminámos o doutoramento, em 2008, quisemos trabalhar juntas. Ora, na época, estava-se a estudar a apneia do sono e os doentes com esta doente são obesos e tem diabetes tipo 2. Fomos tentar perceber se essa diabetes e a desregulação dos CB estavam relacionados. Após testarmos em ratinhos o corte dos nervos dos CB, percebemos que eles perdiam peso, produziam insulina de forma mais eficiente, baixavam os níveis de colesterol e de triglicerideos e a pressão arterial. Publicámos o que tínhamos descoberto e, em 2013, fomos contactadas por uma multinacional farmacêutica que nos financiou para desenvolvermos um nano-dispositivo para ser implantado nos nervos e provocar o mesmo efeito do corte cirúrgico, desligando-o. Chegámos a uma patente para a criação deste dispositivo bioeléctrónico para modelar o nervo desregulado e corrigir o padrão de doença. Quando é ligado o dispositivo, a diabetes desaparece, quando é desligado, volta. Candidatámo-nos agora a uma bolsa do European Research Council para fazer, se o projecto for aprovado, a translação para a parte clínica, a ser realizada no CHL. Na diabetes tipo 1, embora não tenhamos ainda testado em modelos animais, há sinais de que poderá haver benefícios no controlo da desregulação que leva ao ataque auto-imune ao pâncreas, que produz a insulina.
Além da insulina, há quem tente controlar a diabetes tipo 1 com mezinhas: chás ou alimentos.
A diabetes é uma doença vascular. Começa com uma doença auto-imune que ataca o pâncreas, que deixa de produzir insulina, substância que funciona como chave para tirar o açúcar da corrente sanguínea e usá-lo para alimentar as células. O organismo tem formas de compensar isso; as células podem usar outros substratos energéticos além do açúcar, como os corpos cetónicos, para manter os orgãos em funcionamento. O problema é que o açúcar começa a acumular-se nos vasos sanguíneos… é como se fosse uma “caramelização” das células dos vasos sanguíneos, com impacto nos mais frágeis, como os da retina e coronárias. O exercício físico é das melhores coisas que temos para a saúde dos nossos vasos, porque estimula a produção de moléculas que impedem esta “caramelização”. O que pode haver é a utilização de um pâncreas biónico ou artificial para a administrar.
Isso é uma bomba de insulina com um sensor. A exequibilidade deste dispositivo assenta no desempenho desse dispositivo, porque a restante tecnologia está bem testada…
O problema é o sensor, sim. Neste momento, há-os já com Machine Learning/ Inteligência Artificial integrada, que aprende como o corpo da pessoa onde esse “pâncreas” está implantado se comporta. Coloca-se um sensor subcutâneo que analisa a glucose [açúcar] intersticial, que está espalhada entre as células, e que envia as medições que faz, via wireless, para a bomba de insulina. Esta apercebe-se do nível de glucose e administra a insulina, com base no algoritmo, em função das necessidades da pessoa. Como faz uso de Inteligência Artificial, à medida que vai sendo utilizada, vai conhecendo e aprendendo, tornando o seu funcionamento cada vez melhores. Porque os organismos não são todos iguais, vai reconhecendo os padrões diários e prevê, ao fim de algumas semanas, as hipo e hiperglicemias. As soluções estão a evoluir muito depressa. No ano passado, na Websummit, uma empresa suíça apresentou um sensor que pode ser colado num dente e analisar a saliva. Há também sensores de glucose que a detectam na transpiração ou em lentes de contacto.
O recolhimento devido à Covid-19 colocou, por um lado, mais gente a passear e a fazer desporto e, por outro, atirou mais gente para os braços do sendentarismo. E o teletrabalho não veio ajudar…
Esse será um problema grave no futuro. Vejo vantagens na utilização do teletrabalho, na gestão de alguns aspectos, nomeadamente, na gestão do tempo de viagens e de deslocações que podem ser evitadas. Mas a questão presencial, especialmente, na altura de formação dos mais novos, para adquirir as competências sociais que vão ser cada vez mais diferenciadoras. Não se pode acabar com a empatia e contacto humanos, que são fundamentais para o futuro.
Se se conseguir ser tão ou mais produtivo à distância, muitos empresários e colaboradores vão fazer as contas.
Já fiz viagens transatlânticas, para ter reuniões de três horas em Chicago, num hotel do aeroporto, e regressar. A reunião poderia ter sido feita recorrendo à tecnologia. São coisas que devem ser repensadas, até pela sustentabilidade do planeta. Veja-se a quantidade de viagens de avião e de carro sem necessidade. Esta é uma oportunidade de passarmos a usar as tecnologias para questões de rotina. No entanto, as pessoas que vão passar a estar mais tempo em teletrabalho, precisam de escapes para evitar o sedentarismo. Tenho esperança que possam sair dos grandes centros urbanos e vão viver em zonas mais tranquilas. As regiões fora de Lisboa vão ganhar habitantes com o teletrabalho. Tenho muitos amigos que dizem que é possível regressar a Leiria ou a Santarém. Querem mudar, na expectativa de terem maior qualidade de vida e tempo para si. Claro que haverá quem se irá acomodar e passar mais tempo em casa. É fundamental que as empresas tenham essa noção e que, a meio dos períodos de teletrabalho, façam uns lembretes para pausas.
Na sua opinião, o que foi que fez que Portugal tenha gerido bem a pandemia?
Contou muito o factor Itália e Espanha e as consequências dramáticas que vimos. Vendo o que estava a acontecer, os portugueses perceberam que era uma coisa séria e até se anteciparam às autoridades. E o Governo esteve bem nas medidas que tomou; agiu atempadamente e o confinamento foi fundamental. Por outro lado, o coronavírus agiu de forma mais suave no nosso País. Resta saber porquê. Há a hipótese de estes vírus se modificarem muito rapidamente. Desde que surgiu na China, já teve mais de 150 mutações. É importante saber se o coronavírus que atacou o norte de Portugal sofreu uma mutação que o tornou menos agressivo. Com o SARSCoV- 1 e com o MERS, as mutações foram tais, que, de repente, eles desapareceram.
O facto de ter corrido bem, pode levar a que muitos desvalorizem o risco e ter comportamentos que os colocam e aos outros em risco.
Há valas comuns nos Estados Unidos e no Brasil e não podemos esquecer as escolhas de quem salvar, que foram feitas em Espanha e na Itália. É assustador. Em Portugal, se calhar, identificámo- nos com os nossos congéneres europeus. Nos EUA, a Covid- 19 pode ter sido desvalorizada por ser um problema longínquo da China e da Europa. Temos de nos habituar e preparar para que voltem a aparecer mais vírus respiratórios. Temos de educar urgentemente para o que aí vem. Tem de passar a ser obrigatório aprender nas escolas o que é um EPI – Equipamento de Protecção Individual, como usar uma máscara, como desinfectar as mãos, como colocar e tirar umas luvas… não estamos livres de voltarmos a ter de lidar com um vírus mais agressivo. No livro a Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, o invasor, que era tão poderoso, foi derrotado pelo vírus de uma simples constipação. Temos de estar prevenidos!