A morte de Valentina chocou o País. A autópsia revela agressões de enorme brutalidade sobre a menina de 9 anos.
O sofrimento a que a criança terá sido sujeita leva qualquer cidadão a questionar a razão de um pai, alegadamente, matar a filha e ainda esconder o seu corpo.
Especialistas forenses ouvidos pelo JORNAL DE LEIRIA defendem que o pai e a madrasta, que terá colaborado na ocultação do cadáver, deveriam ter sido sujeitos de imediato a uma perícia forense para avaliar os traços de personalidade.
Mauro Paulino, psicólogo clínico e forense, e Carlos Poiares, docente de psicologia criminal, consideram que a informação sobre quem são aqueles dois arguidos pode ser preponderante para a descoberta da verdade.
“O que lhe passou pela cabeça? Para obter a resposta é imprescindível conhecer este homem. Por detrás de um acto há um actor, há uma relação com a mulher, com a ex-mulher e com a filha. Assassinar uma filha já é bárbaro e nas barbas dos outros filhos sobe exponencialmente”, afirma Carlos Poiares.
Mauro Paulino explica que “as perícias pedidas ao nível da psicologia forense ajudam a perceber o perfil dos indivíduos”.
“Em alguns casos, pode contribuir para avaliara perigosidade dos arguidos ou dar informação sobre um factor de risco e de protecção.”
Por exemplo, “o facto de ser uma pessoa que demonstre maior ou menor frieza pode contribuir para a decisão”.
Se a perícia indiciar que se está perante uma pessoa “manipuladora ou com um determinado comportamento”, a informação“pode ser útil para o julgamento para aferir da credibilidade das afirmações do arguido”.
À pergunta que razões levam um pai a matar um filho, Carlos Poiares sublinha que a resposta vai também”resultar da avaliação psicológica [LER_MAIS]de cada um dos arguidos”, devendo despistar-se se há algum problema de saúde mental.
Mauro Paulino recorda que “qualquer um de nó s pode matar”. “O quadro que é desencadeado pode ou não indiciar um desvio de personalidade”, acrescenta.
Este psicólogo forense alerta, contudo, que “uma coisa é uma patologia mental, que pode ser esquizofrenia ou doença bipolar, que influencia a noção da realidade” e outra é o traço da personalidade.
Segundo explica, uma alteração no perfil psicológico “não faz perdera noção da realidade e há consciência dos actos”, logo a pessoa é“imputável”.
Por exemplo, com “alguém que dá 10 facadas e não tem empatia pela vítima nem controlo dos impulsos e demonstra uma frieza emocional” está-se perante “traços de personalidade” e não doença mental.
Com base nas informações que têm vindo a ser divulgadas pela comunicação social, Carlos Poiares considera que “mais uma vez há um falhanço dos dispositivos de controlo”.
“Estamos perante uma criança que foi sinalizada, deixou de o estar e depois morre. Começam a existir várias situações destas comas vítimas de violência doméstica e com as crianças”, critica.
Este docente aponta para a urgência da realização de uma avaliação psicológica, que também deveria ser feita quando há processos de regulamentação parental.
“As crianças devem ser ouvidas não só para saber com quem preferem ficar, mas para darem a conhecer a dinâmica familiar”, acrescenta.
Carlos Poiares entende ainda que também há um “falhanço da comunidade”.
“Agora, ouve-se um coro de carpideiras, mas nunca ninguém denunciou nem apontou alguma situação.”
“Também não sei se não há um falhanço da mãe. Mesmo que haja um acordo para a criança ficar como pai, 50 dias, mesmo em período de confinamento, parece-me demasiado”, constata Carlos Poiares.
Mauro Paulino apresenta três causas que a literatura e os estudos realizados apontam como motivações para o filicídio.
“Pode ser ponderado. Alguém que o está a fazer pelo bem da criança. Há associada uma ideação suicida. Ou porque a criança tem uma doença grave ou porque o progenitor vai morrer e acha que a criança não terá ninguém para cuidar dela e não pode ficar sozinha no mundo. Logo, o melhor é matá-la.”
Segundo o psicólogo forense há ainda o filicídio por vingança, “como retaliação por alguma situação que está por resolver e desloca-se a raiva para a criança”.
Outra situação é a morte acidental durante uma punição. “Há um descontrolo, que poderá provocar uma lesão e depois é como uma bola de neve em espiral, que se torna fatal, mas inicialmente não houve intenção.”
Mauro Paulino admite que o que possa ter acontecido no dia da morte de Valentina “só poderá ser confirmado através da análise ao perfil do arguido”, até porque “a personalidade é um padrão mais ou menos rígido”.
“Da mesma forma que se espera pelo resultado da autópsia ou se ouve a testemunha para memória futura, seria importante ter esta perícia feita logo no momento em que os arguidos são ouvidos por um juiz. Deve ser realizada o mais rapidamente possível, até porque depois têm mais tempo para pensar e podem ser instruídos pelo advogado.”
Apesar disso, Mauro Paulino afirma que “existem uma série de instrumentos que o psicólogo forense tem, que acautelam o risco de ser enganado”.
Carlos Poiares considera que numa situação como este homicídio, há “um comportamento dominante, à partida, do pai sobre a madrasta”.
“Há um momento em que ela sai de carro e poderia denunciá-lo. Mas será que não estava a ser ameaçada? Não temeu pelos filhos, que estavam em casa? Viu que ele tinha matado a filha e poderia fazer o mesmo aos outros.”
O docente salienta que não a está a “desculpabilizar, nem a inocentar”,mas “quando há um dominante pode levar a desembocar numa situação que pode não ser a esperada”.
“Espero que não comece a acontecer com mais menores, o que já se verifica no contexto de violência doméstica, onde há cifras negras de crianças que chegam ao hospital com pernas e braços partidos, alguns com ossos que já colaram sozinhos, vítimas de agressões, abusos sexuais e psicológicos”, alerta.
Por isso, Carlos Poiares considera que é “urgente” dar melhor formação a quem trabalha nestas áreas e garantir uma colaboração maior entre as comissões de protecção de menores, tribunais e polícias. “Se há uma criança sinalizada, a polícia deve ter conhecimento para monitorizar.”