Quatro vezes por semana, Pedro (chamemos-lhe assim) percorre os três quilómetros que separam a urbanização onde mora, na Nova Leiria, até ao campo de treinos da Academia do Colégio Conciliar Maria Imaculada (CCMI), na Cruz da Areia. Depois volta para casa, num total de seis quilómetros a pé.
É natural do Uzbequistão, tem 17 anos, mora e estuda em Leiria há cerca de quatro anos. Antes de jogar futebol neste clube, já treinara na União Desportiva de Leiria. Aqui, tal como lá, nunca jogou. Tem a certeza de que seria sempre convocado para jogar, tal é o empenho.
Mas está entre as centenas de jovens estrangeiros em Portugal que não podem ser inscritos ao abrigo do regulamento da FIFA, no âmbito da Protecção de Menores. As excepções aplicam-se apenas a casos muito particulares, e desde que os jogadores (crianças e jovens até aos 18 anos) residam em Portugal há mais de cinco anos.
Pedro mudou-se da União de Leiria para a Academia do CCMI porque ouviu dizer que ali era mais fácil resolverem a sua situação. “Porque já tínhamos conseguido desbloquear um caso, reunimos uma série de documentos, juntámos um grupo de pais, um deles advogado, e depois de conseguida a nacionalidade, foi mais fácil”, conta ao JORNAL DE LEIRIA Renato Cruz, presidente da Direcção do clube.
Mas no caso de Pedro, não está fácil. “É frustrante para o miúdo. Treina imenso, dedica-se muito, e quando à sexta-feira vem a convocatória…nunca é para ele”. Na Academia, Direcção e treinadores esperam que aguente mais um ano, até atingir a maioridade. Mas não tem sido sempre assim.
“Há miúdos que desistem. Às vezes custa muito, porque são jovens talentos, mas sobretudo porque o desporto é tão importante na vida das crianças e jovens. E quando desanimam, dificilmente os conseguimos recuperar para uma vida saudável”, sublinha Renato Cruz. O dirigente insiste: “a mim o que me preocupa é mais a questão social. Não é a parte competitiva que nos perturba, é mesmo ao nível da integração”.
Por estes dias, o clube conseguiu inscrever (finalmente) uma atleta dos infantis, ao cabo de uma luta titânica. “Foi uma pequena vitória”, afirma o dirigente, mas a par do rapaz do Uzbequistão, há mais meia-dúzia de casos que atormentam a Academia, nascida em 2015, onde actualmente treinam e jogam 300 atletas, em 20 equipas de futebol.
Os casos de impedimento são de crianças e jovens naturais do Brasil, Angola e Cabo Verde. Com o aumento do número de estrangeiros em Portugal (registado nos últimos anos), os clubes têm vindo a pressionar as Associações distritais e a Federação Portuguesa de Futebol.
[LER_MAIS]Não raras vezes, o secretário de Estado do Desporto, João Paulo Rebelo, é confrontado com esse impedimento sempre que se desloca a eventos desportivos, por todo o País. No distrito de Leiria, já aconteceu várias vezes. Dizem-lhe que “as leis da FIFA estão a sobrepor-se às leis do país. Falta vontade política para resolver isto”, frisa o responsável.
A verdade é que ao longo dos últimos anos têm surgido os casos mais caricatos, não necessariamente de crianças que chegam ao país já em idade escolar. Na memória deste clube está bem fresco ainda “o caso de uma menina nascida em Coimbra, na Maternidade Bissaya Barreto, de mãe brasileira e pai angolano. Foi um calvário para a conseguir inscrever”.
O que diz a FIFA
A Federação Portuguesa de Futebol é diariamente confrontada pelas associações distritais a este respeito. Nos termos do Regulamento da FIFA, as transferências internacionais de menores, seja de que nacionalidade for, são proibidas. A proibição aplica-se também às primeiras inscrições de menores estrangeiros.
A FIFA admite, no entanto, autorizar a transferência/primeira inscrição se estiverem preenchidas algumas das excepções previstas no Regulamento do Estatuto e Transferências de Jogadores, e que estão publicadas num comunicado oficial.
O artigo 19 refere no número 2 da alínea a) que tal é possível quando “ambos os pais biológicos do jogador se mudam por razões não ligadas ao futebol”. Assim, a excepção é válida quando o jogador acompanha os pais, que se mudam para um novo país por razões de trabalho – ou por outra razão não ligada ao futebol.
Nesses casos, impõe-se reunir um conjunto de documentos, onde se destaca o contrato de trabalho dos progenitores, a prova de identidade, nacionalidade e residência, entre outros.
A excepção aplica-se igualmente aos jogadores menores que residam no país “continuamente nos últimos cinco anos”, e ainda aos refugiados, “quando não se pode esperar que regresse ao seu país de origem, uma vez que a sua vida ou liberdade estariam ameaçadas por razões de raça, filiação,nacionalidade, filiação num grupo social específico ou opinião política”.
Desde 2009 que o artigo 19 do Regulamento do Estatuto e Transferências de Jogadores da FIFA é muito claro quanto à inscrição com transferência internacional de jogadores menores, extensível à primeira inscrição dos jogadores com nacionalidade diversa da Portuguesa, que estão sujeitos à aprovação prévia de uma Sub-Comissão nomeada pela Comissão do Estatuto dos Jogadores da FIFA.
Manuel Nunes, presidente da Associação de Futebol de Leiria, destaca ao JORNAL DE LEIRIA que até ao momento “verificaram-se 27 jogadores nesta situação, dos quais seis estão à espera de deferimento da FIFA e três estão em processo de confirmação de dados dos clubes, que consta do programa de inscrições da FPF”.
Já o secretário de Estado do Desporto, João Paulo Rebelo, considera que “os menores enquadrados legalmente não estão impedidos de jogar”. Numa entrevista recente ao Diário de Notícias, o governante prefere destacar os muitos casos em que os menores “desde que sejam residentes em Portugal, respeitando o enquadramento legal vigente, podem ser inscritos em clubes e jogar nas competições nacionais”.
Refuta qualquer “falta de vontade política”, muito menos a ideia de que Regulamento da FIFA esteja a sobrepor-se às leis do País. “O Regulamento da FIFA está em consonância com as Convenções Internacionais que, nos termos do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, vinculam o Estado Português”, sublinha João Paulo Rebelo.
De resto, foca sempre o que esteve na base deste regulamento: “o tráfico de seres humanos no desporto, onde se inclui muitas vezes menores de idade, é cada vez mais uma preocupação e tem de ser combatido através de uma política de segurança coordenada e eficaz, respondendo aos principais riscos e ameaças internas e externas”.