“É seguro comer aqui? Posso beber a cerveja chinesa sem problema?” “Ninguém foi recentemente à China? Os produtos vêm de fora?” Estas são algumas das perguntas que são feitas por quem, apesar de ter algumas dúvidas, não deixa de ir ao restaurante chinês, mas fá-lo na defensiva.
Desde que o coronavírus – agora com o nome de Covid-19 – invadiu todos os noticiários e meios de comunicação social, a população rapidamente ligou o botão de alerta e passou a desconfiar da comida chinesa e até dos orientais que passam na rua. A isto não é alheio o facto de notícias falsas terem sido postas a circular, onde mostravam pessoas a comer morcegos, animal que se suspeita – ainda não há certezas – de ter sido o primeiro transmissor.
Até à hora do fecho do JORNAL DE LEIRIA tinham morrido 2012 pessoas. Mas o número que poucos falam é que 14.954 de infectados, dos 75.201 recuperaram da infecção do vírus. Em Leiria, quase todos os restaurantes chineses confirmam uma diminuição no número de clientes. “Apesar de termos 30 anos de casa, notámos uma quebra. Os clientes habituais continuam a vir e alguns até ficaram pasmados com o facto das pessoas deixarem de vir”, revela Isabel Ding, filha dos proprietários do Ming Yuan.
Segundo conta, houve mesmo clientes que questionaram se a calma de um sábado à noite era provocada pelo coronavírus.
A jovem, nascida em Portugal, tal como o seu irmão, garante que todos os produtos frescos são nacionais. “Não faz sentido mandar vir frango da China”, exemplifica, acrescentando que se é portuguesa e está em Portugal faz sentido “ajudar a economia local”.
“Temos um fornecedor português desde que abrimos e os nossos produtos são de confiança”, reforça Isabel Ding, ao sublinhar que só adquire produtos chineses – embalados – quando não existem em Portugal. Isabel Ding lamenta que as pessoas não parem para pensar. “Há portugueses que vão com muita frequência à China e outros que viajam pelo mundo. Qualquer um pode trazer o vírus e as pessoas não têm cuidados junto deles.”
O restaurante Yu Lin também sentiu uma diminuição do número de refeições servidas. “É verdade que as pessoas vêm menos, mas temos clientes habituais que nos conhecem e continuam a vir”, afirma Lin Sen.
A proprietária deste estabelecimento acrescenta que os clientes que aparecem “não têm medo”, até porque sabem que “os frescos são produtos nacionais”. “Nem fazia sentido outra coisa”. Situado no centro de Leiria, o Yokohama não escapou ao receio do Covid- 19. “Não é muito significativo, mas recebemos um pouco menos de clientes. As pessoas que vêm ao restaurante trabalham na zona, algumas continuam a frequentar o restaurante, mas outras deixaram de vir”, revela Lin Ling, gerente.
Liang Dai está há vários anos em Portugal e admite que os clientes têm medo de ir ao restaurante LaiCun. “As pessoas vêm menos, mas é preciso que saibam que os chineses fazem um bom trabalho na prevenção e no meu restaurante a comida é comprada em Portugal”, afirma a responsável, admitindo que não sente discriminação pela aparência asiática. No entanto, “sei que isso está a suceder nas cidades maiores”.
[LER_MAIS]“Em Leiria as pessoas são simpáticas e não há qualquer problema.” A poucos quilómetros de distância, o restaurante Kuo Cang tem recebido menos clientes, mas o alerta do Covid- 19 coincidiu quase em simultâneo com as obras na Av. Nossa Senhora de Fátima. “Não conseguimos perceber qual a razão verdadeira da quebra de pessoas. Se calhar é resultado das duas situações”, afirma Horário Gong, que compreende o receio.
“Há pessoas que nos perguntam sobre a comida, mas muitos clientes conhecem o restaurante há mais de 20 anos e confiam. O que compramos é português, à excepção de produtos que não existem mesmo cá”, informa. Se os restaurantes sentiram o impacto do Covid-19, as lojas de venda de produtos asiáticos continuam a ter a mesma procura, garantem todos os responsáveis visitados pelo JORNAL DE LEIRIA.
“Olha o coronavírus”
O desconhecimento que ainda existe à volta do Covid-19 ajuda a aumentar o medo. O evitar dos restaurantes chineses ou mesmo o contacto com pessoas originárias dos países asiáticos, mesmo que algumas sejam portuguesas e outras nem tenham estado recentemente na China, são comportamentos contraditórios com as atitudes de prevenção que muitos não têm no dia-a-dia. Os cuidados para evitar contrair o Covid-19 são os mesmos que devem ser prática obrigatória para prevenir o contágio de uma gripe ou pneumonia, doenças que matam milhares de pessoas todos os anos.
Apesar de todos os asiáticos com quem o JORNAL DE LEIRIA falou não sentirem a discriminação, a verdade é que as ‘bocas’, mesmo em jeito de brincadeira, acontecem e “magoam” quem as ouve, refere um jovem chinês. Entrar num café e referirem: “olha o coronavírus. Será que é seguro estar perto?”. Ou, “alerta vermelho, alerta vermelho”, expressão que foi usada para dar conta da chegada de turistas ao Mosteiro de Alcobaça, são ouvidas um pouco por todo o lado. Discriminação ou xenofobia directa, ninguém admite ter sentido. “Podem ser casos pontuais.”
Dois estudantes chineses do Politécnico de Leiria garantem que a sua vida não mudou desde que o Covid- 19 se tornou conhecido. “Não sentimos qualquer situação de discriminação. Os portugueses são muito simpáticos e amáveis e todas as pessoas continuam a ser gentis e acolhedoras”, garantem os jovens de 20 e 24 anos, que preferem ficar no anonimato.
“A única situação que passei foi quando fui ao dentista e me perguntaram se tinha estado na China, mas esse cuidado parece-me bem . Agora, ninguém se afastou de mim por ser chinês, embora já tenha ouvido relatos de casos desses”, refere um dos jovens.
O colega acrescenta que situações de “xenofobia e racismo são lamentáveis” Um destes estudantes ficou responsável pelos colegas que regressaram recentemente da China. “A embaixada pediu-me para lhes passar a mensagem de que seria aconselhável cumprirem um período de quarentena de 14 dias. Como pessoas responsáveis que são, aceitaram de livre vontade. Perante estas atitudes não tenho medo do coronavírus, porque sei que as pessoas estão a cumprir as políticas de prevenção”, assegura.
Os estudantes chineses que regressaram recentemente ficaram em casa de conterrâneos em Lisboa. “Houve disponibilidade de várias famílias em recebê-los, antes de iniciarem de novo os estudos em Leiria.”
Este jovem faz questão de garantir que existe uma “ideia errada” dos asiáticos. “Os portugueses e os europeus, de uma maneira geral ,pensam que os chineses comem todos os animais. Isso não é verdade. Nunca comi cão ou gato”, exemplifica.
O estudante explica que há uma ou outra região específica em que culturalmente é tradição comer estes animais, mas não é prática comum em toda a China. Os jovens lamentam ainda que tenham sido veiculadas informações erradas, que ajudam a contribuir para a insegurança das pessoas face aos chineses.
“Imagens como as que passaram de pessoas a comer morcegos e que depois se verificou serem mentira contribuem para que as pessoas acreditem que o vírus é um problema da China.” Os estudantes lembram que “existem vírus em todo o lado” e, uma vez que a “China tem a maior população do mundo, uma coisa que aconteça é ampliada e exagerada”, mas “não é preciso ter receio”.
Aliás, os jovens apontam exemplos de outras doenças que podem ser fatais como a malária, o ébola ou a cólera. Nem é preciso procurar doenças mais características de países em desenvolvimento. Ainda há gente a morrer de sarampo, apesar de existir vacina e a maioria dos países já ter conseguido eliminar esta doença. Mas os movimentos anti-vacinação fazem com que estas patologias ainda se verifiquem, como sucedeu com os surtos que têm surgido.
Acompanhar família à distância
Com a família na China, a preocupação destes estudantes foi perceber que estavam bem. “Toda a minha família está em boas condições de saúde. O governo chinês já lançou políticas para garantir a segurança a todas as pessoas. Não saem de casa a não ser para comprar alguma coisas. A situação também está a melhorar e acreditamos que em breve a quarentena será levantada e será possível regressar ao trabalho e à vida normal.”
O estudante garante que não viajou para a sua terra natal porque estar em Portugal é uma oportunidade “única” para conhecer o resto da Europa. “Esta é uma experiência inesquecível. Nas férias aproveitei para viajar por outros países.”
O jovem, que está no 3.º ano de Língua e Cultura Portuguesas, na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais, em Leiria, vai regressar à China, assim que terminar os estudos em Portugal. A mesma oportunidade foi aproveitada pelo colega, que frequenta o curso de Língua Portuguesa Aplicada. À distância, o jovem confessa que ficou preocupado com a família assim que surgiram as primeiras notícias. Mas, os familiares “ficaram em casa e protegeram-se enquanto o coronavírus se espalhava”.
“Mais engraçado é que eram eles que me diziam para ter cuidado.”
Este jovem considera que saber Português vai abrir-lhe portas na China. “As relações comerciais entre Portugal e China têm-se intensificado, o que sucede também com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. A minha família sempre achou que tinha talento para as línguas e esta é uma óptima ferramenta para o meu futuro”, revela.
Os alunos garantem que, apesar da tendência da comunidade chinesa em se unir e andar junta, a escola incentiva a integração com alunos de outras nacionalidades, nomeadamente os portugueses. “Gosto muito de Portugal e sou muito feliz aqui, mas quando estamos longe acabamos por nos aproximar de quem é do nosso país. Mas a escola tem proporcionado formas de interagirmos com outras pessoas, quer através de trabalhos em grupo ou actividades não lectivas.” Além disso, têm um parceiro português, que os orienta no que precisam.
Os números
75.201
infectadas em todo o mundo
com o Covid-19, segundo dados
da Universidade Johns Hopkins,
que apresenta actualizações
diárias. A maioria dos doentes
são asiáticos, tendo-se registado
na Europa 45 casos positivos. Em
Portugal, ainda nenhuma
suspeita foi confirmada
14.954
pessoas já recuperaram da
infecção pelo Covid-19. Os
pacientes que não sofrem de
outras co-morbilidades têm mais
hipóteses de recuperar dos
problemas respiratórios
causados por este vírus