Dedicou a vida ao estudo das doenças auto-imunes, patologias que afectam cerca de 10% da população mundial, com tendência para aumentar. O que está a levar o nosso sistema imunitário a virar-se contra nós?
Não há prova definitiva sobre o assunto, mas há indicações muito fortes relacionadas com a teoria da higiene. À medida que fomos ficando mais limpos, deixámos de usar o sistema imune para nos defender contra as infecções. Em situação normal, o sistema tem a maior parte das suas células em repouso, porque não são precisas. Mas estão lá. O sistema reconhece o nosso próprio corpo, sabe que é nosso e, por isso, não o ataca. Tem mecanismos de protecção. Quando deixa de ser estimulado, esses mecanismos diminuem e, ao decresceram, a incidência de doenças auto-imunes cresce. A tolerância do sistema auto- -imune ao nosso próprio corpo é activa, dominante. Basta que haja umas quantas células que digam ‘isto é nosso, não se ataca’, que o sistema passa a actuar correctamente. Se deixarmos de estimular o sistema, essas células deixam de funcionar.
E deixamos de as estimular por questões relacionadas com o desenvolvimento, como os melhores cuidados de higiene?
Exacto. Por isso é que se chama a teoria da higiene. Por outro lado, graças ao uso universal das vacinas, temos muito menos infecções infantis. No meu tempo dizia-se “sarampo, sarampelo, sete vezes vem ao pêlo”. Hoje, as doenças da infância são raras. Nunca é aceitável que uma criança morra, mas a verdade é que a mortalidade infantil baixou para níveis aceitáveis. A ausência de infecções infantis também provoca esse enfraquecimento do sistema imunitário. Durante muitos anos pensou- se que as doenças auto-imunes e as alergias – que têm o mesmo mecanismo e que também estão a aumentar (na população mais jovem, até aos 25 anos, a prevalência já chega aos 30%) – tinham a ver com o ambiente e com os químicos.
E não têm relação?
Não. Houve uma experiência histórica muito elucidativa. Quando o muro de Berlim caiu e se deu a unificação, as alergias começaram a aumentar entre a população residente na parte oriental, que nessa época estava muito contaminada, devido à proliferação de fábricas sem grande controle ambiental. Aconteceu o contrário do que se podia esperar. Como passaram a estar mais ‘limpinhas’, as pessoas [da parte Oriental] ficaram mais sujeitas a alergias. Está demonstrado que o aumento das alergias e das doenças auto-imunes está relacionado com a diminuição das infecções infantis, consequência também da melhoria dascondições de higiene. Nos países em que a diminuição das infecções e a higiene quotidiana não estão tão desenvolvidas, as doenças auto-imunes têm uma incidência baixíssima. É nos países mais desenvolvidos que a situação é mais problemática. São doenças terríveis, porque ainda não sabemos o suficiente para as curar. Sabemos tratá-las, diagnosticá-las e identificá-las, mas ainda não as conseguimos curar. São doenças crónicas, que, na maior parte dos casos, não são muito graves, mas diminuem bastante a qualidade de vida.
O que falta para que possam ser doenças curáveis?
Falta conhecer melhor os mecanismos que levam àquela agressão. Não se sabe por que é que, quando diminuem as células protectoras do organismo, algumas fazem diabetes, outras artrite reumatóide, outras lúpus e muitas outras doenças diferentes. Há muitos estudos sobre o assunto, mas mesmo assim continuamos a não saber o que é que define o órgão ou a função alvo da auto-imunidade. Enquanto não soubermos isso, vai ser muito difícil curar.
Falou da diminuição das infecções infantis, mas temos assistido ao regresso de algumas doenças que pensávamos controladas. A vacinação devia ser obrigatória?
As pessoas têm de perceber que a vacinação é uma responsabilidade que têm perante si e perante a sociedade. Como diz um colega meu italiano, ‘a Terra é redonda, a gasolina é inflamável e as vacinas são boas e eficazes’. Fazer obrigatória esta prática médica pode ser um caminho. É obrigatório usar cinto de segurança e capacete, embora a probabilidade de eu matar alguém, por ser projectado do carro porque não levava cinto, seja baixa. Se a criança vai a uma escola, a vacinação deve ser obrigatória. Se não for vacinada, por decisão dos pais, e partilhar o seu quotidiano com outras crianças, é uma espécie de agressão pública e isso tem de ser proibido.
Formou-se em Medicina, mas exerceu durante pouco tempo, enveredando pela investigação. O que o levou a fazer esta mudança de percurso?
Não foi por desilusão com a Medicina, mas pelas circunstâncias da vida. Como não quis fazer a guerra colonial, fui para a Suécia, que acolhia bem pessoas que estavam nessa condição e onde tinha vários amigos. A língua era uma barreira para poder lidar com os doentes. Por outro lado, já tinha vontade de fazer investigação. Foi mais fácil, porque o inglês era a língua que se usava. Entusiasmei-me e nunca mais deixei a investigação.
A imunologia foi fruto de um acaso?
Era a disciplina mais interessante na época. Havia muita coisa por descobrir e era uma área que estava muito activa, com muitas coisas a acontecer. O professor com quem trabalhava era uma das pessoas mais relevantes desta área.
Foi um dos imunologistas mais citados do mundo. Teria conseguido fazer a carreira que fez se tivesse ficado em Portugal?
Não, sem qualquer dúvida. Nessa altura praticamente não havia ciência em Portugal. Eu já estava fora quando José Mendes Mourão, de quem era amigo e que se tinha formado em Inglaterra, foi presidir à Junta Nacional da Investigação Científica e Tecnológica, que depois deu origem à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e atribuiu as primeiras bolsas por concurso.
Quando regressou a Portugal, em 1998, já encontrou um cenário diferente.
Significativamente diferente, porque antes não havia nada e passou a haver alguma coisa. Mas ainda estávamos longe da situação ideal. As pessoas saíam pouco de Portugal. Eram formadas umas pelas outras e o ambiente científico era pouco estimulado.
Diz que a criação do primeiro programa doutoral em Portugal foi a melhor coisa que fez no País. Porquê?
O que acontecia então – e ainda hoje se mantém – é que, para fazer um doutoramento é preciso uma bolsa e, para a conseguir, tem de se apresentar um projecto, mesmo que ainda não saiba nada de nada. Então, para o conseguir, o candidato a doutorando vai a uma universidade e o futuro orientador dar-lhe um projecto, que ele submete à FCT. Pode ser um óptimo projecto, mas não é o seu projecto. Isso impressionavame muito. Noutros países, no início dos anos 90, já se tinha percebido a vantagem de ter programas doutorais, em que as pessoas entram, recebem formação durante algum tempo, para perceberem o que querem fazer.
Como funcionava o programa?
Quando iniciámos, fizemos um acordo com o Governo para nos dar um pacote de bolsas e nós, eu e o professor [Alexandre] Quintanilha, seleccionávamos os alunos, que eram submetidos a entrevistas. Os escolhidos passavam um ano a aprender com as melhores pessoas do mundo que conseguíamos trazer. Não só aprendiam, como ficavam a conhecer pessoas relevantes em várias áreas. Cada um fazia depois o seu projecto. Formaram- se cerca de 100 pessoas nesse programa, que estiveram nos melhores sítios do mundo a desenvolver os seus projectos. Muitos voltaram e espelharam-se pelo País. Isso foi muito bom. Provou-se que um programa doutoral, que permite escolher bem as pessoas, tem bons resultados. Uma coisa que me choca muito é que as universidades não possam escolher os seus estudantes. Os alunos concorrem e, se tiverem nota suficiente, entram. Uma universidade que não pode escolher os seus estudantes não é responsável.
Como é que, no seu entender, deve ser feito o acesso ao ensino superior?
Dando às universidades a possibilidade de escolher os seus alunos. Isto já se faz em vários países do mundo. Em Portugal não, por várias razões. Uma delas é que os professores e as estruturas universitárias não têm tempo. Quando dirigi aquele programa doutoral, entre 1993 e 2000, tínhamos 200 a 300 candidatos por ano e falávamos com todos pessoalmente e o tempo que fosse preciso. A maior parte dos professores de Medicina, por exemplo, não tem tempo para isso. Outra das razões é as pessoas pensarem que um modelo desta natureza dá azo a que se façam admissões por cunha. Houve ministros que me telefonaram a dizer que tinham familiares a concorrer ao programa. As pessoas achavam normal ligar ao director do programa a meter uma cunha. No curso de Medicina no Algarve, que não é perfeito, a universidade já escolhe os seus alunos. A selecção não se faz apenas com base na média.
Hoje, depositamos muito do futuro da Humanidade na ciência. Esperamos que, por esta via, se consigam resolver os grandes problemas que nos afectam e irão afectar. Mas em Portugal a verba canalizada para a ciência não chega sequer a 2% do PIB.
Se descontássemos apenas 2% dosalário para a reforma estávamos tramados. Íamos ter uma velhice terrível. E é isso que se anuncia para os países que não investem em ciência, no sentido em que não preparam o futuro. Antes, havia os chamados salões de inventores. A tecnologia aparecia de uma invenção. Hoje, toda a tecnologia vem da ciência. A ciência é a fonte primária da tecnologia, da inovação, do progresso sócio-económico. Se queremos avançar nesses sectores, temos de investir na ciência. Sendo o investimento muito curto, os jovens emigram. Agora já não tanto. Mas, muito do que se faz hoje em Portugal é à custa de instituições privadas como a Fundação Champalimaud ou a Gulbenkian. Por outro lado, esta falta de investimento na ciência obriga-nos a comprar tecnologia noutros sítios. E, em muitos casos, é mais caro comprar tecnologia do que investir em tentar descobri-la.
Além do financiamento, que outros entraves se colocam à ciência em Portugal?
Um dos problemas advém da natureza da FCT. Noutros países, os conselhos que fazem a distribuição do dinheiro para a investigação são emanações da comunidade científica. A FCT não é. Funciona como uma espécie de uma direcção-geral de um ministério, com a missão de cumprir a agenda política de quem está no Governo. Isto é um entrave terrível. Vem um governo, e faz uma coisa bem, mas o seguinte reverte essa decisão, para fazer outra pior. Assim não se avança muito. Podíamos estar muito melhor se a FCT fosse uma agência emanada da comunidade científica, na qual esta se sentisse representada.
Disse, há uns anos, que se tivesse uma varinha de condão, usava-a para que “o sistema educativo melhorasse significativamente”. Se tivesse essa varinha agora, o que mudava?
Oh, tanta coisa. A educação é o mais importante de tudo. É a única coisa que nos liberta da nossa condição de bichos. Muito se tem feito na educação em Portugal ao nível dos primeiros anos da infância, mas depois não estamos tão bem. Ainda se ensina muito com recurso à memorização, quando já não é preciso memorizar nada. Está tudo ao alcance de um clique. Isto é verdade até ao fim da universidade. O curso de medicina do Algarve, de que já falei, ensina com base num modelo em que os alunos aprendem através de casos clínicos que são desafiados a resolver. Há uma espécie de coordenador que os ajuda a encontrar e a organizar a informação. Isto é muito mais preparatório para a vida do que estar horas e horas sentado numa sala a ouvir um tipo a debitar coisas, que estão noutro sítio.