“Dez euros? Como acha que me sinto quando um homem me oferece dez euros para fazer todo o serviço? Humilhada e sem qualquer dignidade.” O desabafo é de uma trabalhadora do sexo, de 29 anos, cujo sonho é abandonar a prostituição e ter uma vida “normal”.
Marta (nome fictício) não tem família. Viveu desde pequena num orfanato na Bulgária. Quando se deu conta estava em Portugal, de saltos altos nos pés, à beira da estrada a vender o corpo. “Fui enganada por um pedaço de pão.”
“Não é um orgulho nem uma solução, mas não consigo um emprego e preciso de dinheiro para pagar renda e comer. Tenho procurado outro tipo de trabalho, mas a resposta é sempre a mesma: depois ligamos”, admite ao JORNAL DE LEIRIA, numa sexta-feira de chuva, que não a impediu de ir para a rua para ganhar o seu ‘salário’, cujo valor depende sempre dos clientes do dia. Marta mostra a revolta pela vida que leva.
Com os olhos embargados afirma que preferia ganhar pouco, mas ter um trabalho que não a obrigasse a prostituir-se para ter dinheiro para sobreviver. “Todos merecem uma oportunidade e gostaria de a ter. Não faço isto porque quero, mas por necessidade. Gostava que me pudessem ajudar a ter outra opção de vida. Gostava de estudar para crescer enquanto pessoa. Sentir- me uma pessoa útil. As pessoas não fazem ideia daquilo por que passamos. Pergunto-me muitas vezes qual vai ser o meu futuro? Se vou ter filhos, um relacionamento?”
Além de ser trabalhadora do sexo, a mulher assume problemas com drogas: “Já deixei várias vezes de consumir, mas a vida de m** que levo empurra-me de novo para baixo, entro em depressão e a droga ajuda-me a esquecer de tudo. É um escape.” Ana Loureiro lançou em Novembro a petição Legalização da Prostituição em Portugal e/ou Despenalização de Lenocínio, desde que este não seja por coacção, que alcançou agora o número de assinaturas para que o assunto seja discutido na Assembleia da República. Na terçafeira, já 4367 pessoas tinham subscrito a petição.
Dignidade às trabalhadoras do sexo
Em declarações ao programa da TVI, A tarde é sua, a autora da petição admite que gere uma casa de acompanhantes de luxo e pretende que esta prática seja considerada uma profissão “para dar dignidade” às mulheres e a possibilidade de trabalharem em melhores condições, com um contrato de trabalho, que lhes permita ter acesso a uma baixa médica e reforma, exemplificou.
Marta concorda com a legalização, precisamente para que todas as trabalhadoras do sexo possam ter os mesmos apoios que qualquer cidadão. “Não sou pior do que qualquer outra pessoa por fazer o que faço. Mas não tenho acesso a uma baixa médica, não faço descontos e não consigo, por isso, garantir quaisquer apoios. Ao menos essa regulamentação poderia dar-nos um salário e até ter esperança num futuro melhor”, adianta, ao acrescentar que a legalização ajudaria também a regulamentar a profissão e melhorar as condições em que trabalham.
[LER_MAIS]“O trabalho tornar-se-ia mais seguro e poderia limitar a acção dos chulos”, diz, lamentando que as forças policiais se preocupem “pouco” com as prostitutas. “Eles poderiam parar e perguntar se estamos a ser alvo de alguma rede, se há algum problema, mas passam por nós e não querem saber.”
Ana (nome fictício), 36 anos, brasileira, quando chegou a Portugal já sabia ao que vinha. “Quando me disseram que vinha lavar carros sabia que não era bem assim. O acordo com a mulher que me contratou era ficar três meses na sua casa para pagar o bilhete que ela tenha adiantado e em troca obedecia às suas regras. Ela dava-me 50% do valor que fazia com os clientes.”
A irmã passou pelo mesmo, sob a constante ameaça de ser denunciada ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), devido à ilegalidade. “Não admiti ficar fechada em casa. Avisei-a que se chamasse o SEF ela estaria pior do que eu, porque foi ela que nos foi buscar e estava a ficar com o dinheiro que eu fazia.” Para evitar estas situações, Ana, que actualmente trabalha na rua, defende a legalização.
“Seria melhor tudo funcionar numa casa, regulamentada, com uma cama, casa-debanho e com a possibilidade de termos mais direitos sociais. Gostaria de ter um salário ao final do mês e poder fazer os meus descontos.”
“O que está em causa é a dignidade da pessoa humana. A legalização da profissão não resolve a questão. Concordo com a regulamentação, mas não com a legalização. A prática não é ilegal. Mas há uma ausência da regulamentação desta actividade”, admite Elza Pais, sublinhando que a sua posição só a vincula a si.
Apoio para quem quer deixar a prostituição
A deputada do PS eleita pelo círculo de Leiria, presidente das Mulheres Socialistas, ex-secretária de Estado da Igualdade e ex-presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, considera que a legalização da prostituição é “tornar digna uma profissão que pode ferir a dignidade humana” e que viola várias convenções internacionais. Elza Pais defende, por isso, a “regulamentação” da actividade, de forma a permitir que as trabalhadoras do sexo possam aceder a “direitos sociais ou seguros sociais voluntários para quem o deseje”.
Garantindo a auto-determinação de cada pessoa, a deputada entende ainda que deveria ser lançado “um grande plano nacional de apoio à saída da prostituição para quem quiser”. “Se há pessoas que querem estar nesta actividade com todos os direitos sociais assegurados devemos permitir, mas também devemos ajudar as pessoas que queiram abandonar essa prática e deve-lhe ser dado todo o apoio para sair”, sublinha.
É precisamente uma situação deste género que Marta gostaria que existisse para dar um rumo diferente à sua vida. “Tenho uma filha que me foi retirada e está numa instituição. Nem sequer me deixam visitá-la. Entretanto ela faz 18 anos e vai olhar para a mãe e ver uma drogada e uma prostituta. Gostava de poder tê-la comigo. Passo os dias em casa e não saio à rua porque sinto vergonha. Preciso de ajuda para arranjar um emprego e largar esta vida”, insiste.
Já Ana confessa que, apesar de tudo o que já passou, não tem intenção de abandonar, para já, a actividade. “Gostava que houvesse regulamentação, mas não iria sair. Mas a legalização seria muito bom para todas nós.”
O percurso de vida da brasileira é uma autêntica montanha russa. Depois de sair do apartamento onde se prostituía, casou para obter a nacionalidade portuguesa, em troca de dinheiro. “Combinámos um valor e consegui legalizar-me. Mas percebi que a vontade dele era continuar a ‘chular- -me’ e, depois de me tentar enganar, saí de casa e passei a fazer a rua em Leiria.”
Segundo esta mulher, a prostituição de rua não tem as condições de um apartamento, mas acaba por poupar o dinheiro da casa e do anúncio no jornal.
20 euros o serviço
Vinte euros é preço praticado pela maioria das trabalhadoras do sexo de rua. “Tenho locais mais ou menos definidos para onde vou no carro do cliente. Não aceito que tentem conduzir- me para outros sítios para não correr riscos.”
Mesmo assim já foi enganada e agredida. “Um cliente habitual veio com a conversa que se tinha esquecido do dinheiro, mas logo a seguir iríamos ao multibanco. Como já o conhecia, confiei. No final, levou-me até perto do multibanco, mas desapareceu e eu fiquei no carro sem saber dele.” Sentindo-se traída, danificou o automóvel, acabando por ir parar à esquadra da PSP.
“Assumi aos agentes a razão de o ter feito. Como o carro estava em nome de uma mulher… a queixa acabou por não ser apresentada…” O dinheiro é a principal razão que leva estas mulheres a entrarem na prostituição. Algumas levam uma autêntica vida dupla.
De dia cumprem um horário das 9 às 17 horas e à noite fazem horas extra na rua para complementar os fracos salários que não chegam para pagar as despesas em casa, sobretudo, quando há filhos menores. “Ganha-se mais na rua do que numa fábrica. Por isso, há quem opte por trabalhar em zonas muitos diferentes. Geograficamente estão numa distância suficientemente longe para que ninguém as possa identificar”, constata Irene Tereso, coordenadora do projecto Giros na Rua, da associação Inpulsar, em Leiria.