O lugar dele era sempre o mesmo, por detrás da baliza norte, com o Gante e o senhor Américo. Com a voz potente dava conforto aos jogadores da Sismaria de quem tanto gostava.
Ninguém ficava indiferente àquela figura imponente e às vezes, mais indignado com alguma decisão que entendia ser injusta, agarrava-se às redes e intimidava adversários e árbitros.
Eram os nostálgicos tempos do andebol de Leiria, nos idos 70 e 80 do século passado, com o saudoso pavilhão gimnodesportivo de Leiria a rebentar pelas costuras.

O senhor António, é dele que estamos a falar, deixou uma marca indelével em todo o desporto da cidade. Porquê? Nem que seja porque criou, com a esposa, a dona Maria da Nazaré, uma prole de talentosos e apaixonados jogadores de andebol: os Campos.
Naquela altura não havia assim tanto para fazer, o movimento associativo explodia pelo País e na Sismaria foi o andebol que pegou de estaca.
O senhor António estava intimamente ligado ao emblema da Estação e foi por isso normal que quatro dos cinco filhos acabassem, também eles, por aderir à bola na mão.
Filhos e netos
Só a mais velha, a Filomena, acabou por escapar, mas o João, a Isabel, o Álvaro e o Sérgio disputaram com paixão e talento a modalidade em vários clubes da região.
A Isabel, inclusivamente, chegou às selecções nacionais, tal como o Álvaro, que tem no currículo o título nacional de juvenis que a Sismaria arrebatou, em 1984.

É uma relação profunda, íntima, e o tempo não foi capaz de esmorecer o entusiasmo dos Campos. Dos sete netos, seis absorveram todo o amor pelo andebol e fizeram-se jogadores a sério.
Só o João, filho do outro João, teve uma passagem mais fugaz, e acabou por fazer carreira no ténis.
Já o Tiago, filho da Filomena, é hoje uma das figuras mais relevantes do andebol de praia nacional tendo sido campeão europeu em 2018 em representação de uma espécie de Real Madrid dos areais, o Detono Zagreb.

A Joana, filha da Isabel, jogou até há muito pouco tempo, e o André, menino do Sérgio, já joga pela equipa principal da Juve Lis, apesar da idade de júnior.
[LER_MAIS]Se fosse vivo, o senhor António seria um homem muito orgulhoso. Por estes meninos, mas também pelos outros, os da foto que ilustra esta peça. É que por estes dias, três dos seus netos são figuras das selecções nacionais de andebol.
A Ana Filipa, de 25 anos, é uma figura da principal representação feminina. À Rita, de 17, perspectivam um futuro verdadeiramente radioso e tem sido chamada à selecção de sub-18.
O mais novo de todos, o Diogo, de 15 anos, entrou já na fina flor e foi chamado ao primeiro momento competitivo com as cores nacionais.
Verde e vermelho
“Como é quando a Rita joga contra mim? Até gosto que ela marque golos, mas não deixo. Se ela se pica comigo? Claro que pica! E quando está a defender tenho a certeza que me dá mais a mim e sou eu que levo com mais força!”
Ana Filipa adora a prima mais nova e adora jogar contra ela. Defende as cores do Colégio de Gaia, clube pelo qual conquistou duas Taças de Portugal, uma Supertaça e dois títulos nacionais e quer chegar ao terceiro já esta temporada.
Com o curso de Medicina Dentária concluído, está a estagiar em Leiria e treina na Juve Lis quase diariamente… na companhia de Rita. Só viaja para Norte ao fim-de-semana, para afinar a táctica e jogar.
Passou por todas as selecções e conta com mais de uma centena de internacionalizações, muito provavelmente porque tem o privilégio de ter nos genes não uma, mas duas famílias de ilustres andebolistas.
Ela é Campos, mas também é Gante, filha de Luís, um dos mais prolíficos primeira-linha que a região conheceu. Com um pai famoso pelos golos que fazia quase do meio campo, não havia como falhar, ela tinha de ser uma lateral de respeito.
O ídolo não era o progenitor, nem o tio Álvaro, nem o primo Tiago. Ela gostava mesmo era de ver a mana Joana a jogar com a camisola da Sismaria. “Ia com a minha mãe para o banco, levava uma ficha de jogo e apontava os golos que ela marcava.”
Traços distintivos
O que distingue os Campos? “É a força”, garante. Rita vai mais longe. “É o tamanho e a inteligência, mas como estamos ligados desde muito cedo, também temos um melhor conhecimento do jogo.”
Aos 17 anos, joga na Juve e tem o mundo do andebol a seus pés. “Vai ser uma jogadora a sério. Algo de muito bom está reservado para ela”, sublinha a prima, rival às vezes, orgulhosa sempre.
As primeiras recordações que tem de andebol são de ver o pai a jogar nos torneios de praia, com os imbatíveis amigos. “Andava sempre de um lado para o outro com eles”, recorda. Há dez anos, tinha sete, acabou por começar a praticar.
Foi puxada pela tia Isabel, seguindo os passos da Ana Filipa. “Era das maiores” e acabou por destacar-se, “mas de início só levava abadas”. Era mais pela diversão, até que começaram “a ganhar aos rapazes” e a coisa tornou-se séria.
Tinha 14 anos quando foi chamada pela primeira vez às selecções nacionais e nunca mais saiu. É pivot, como o pai, nas últimas temporadas em que jogou.
Já participou em dois Europeus e quer, naturalmente, disputar “muitos mais”, quiçá na companhia da prima, na selecção principal. Voltamos a Ana Filipa.
Com ela, quando a Juve Lis defronta o Colégio de Gaia, é “amigas, amigas, negócios à parte”. “Dou-lhe umas mimos e ela dá-me a mim.”
Faz parte da vida de atleta, como a lesão no tornozelo que sofreu durante o jogo do passado fim-de-semana. Agora, é recuperar rápido e sobretudo bem, porque tem uma carreira brilhante pela frente.
“Se puder ser profissional serei”, garante-nos. Já há convites, alguns deles sedutores, mas antes de sair de Leiria quer acabar o curso do secundário.
Também uma das preocupações do primo mais novo, o Diogo, que acabou se representar a selecção nacional pela primeira vez. Foi no torneio da Lagoa.
Ele, como a Ana Filipa, é Campos, mas também mais qualquer coisa, no caso Faria. A mãe, Carla, e a tia, Ângela, foram jogadoras internacionais. Tinha tudo para dar certo.
Na família, o que sempre seguiu com mais atenção foi o Tiago. Também gosta de ver o irmão André. Seguiu-lhe, de resto, os passos. Primeiro no Batalha, depois na SIR 1.º de Maio e agora na Juve Lis.
Mas primeiro não gostou. Foi jogar à bola até que os genes falaram bem mais alto.
Diogo foge um bocadinho ao padrão Campos. “Sou rápido e tenho boa visão de jogo”, diz. Por isso, joga a central. Da família paterna recebeu a “ambição”.
“Vou continuar a treinar para chegar mais longe.” Se fosse vivo, o senhor António seria um homem muito orgulhoso.