Que ecos lhe chegam do que se vai fazendo em Leiria?
O primeiro passo que um território tem de dar para construir uma identidade é criar um programa e um contacto regular com as artes, dentro da diversidade possível. Acho que Leiria está a tentar, tanto quanto percebo à distância, criar as fundações. No fundo, essa ideia de movimento artístico, que é importante. Foi um pouco esse o percurso de Guimarães. Começou por ter programação, chegou a um momento em que percebeu que tinha de dar o passo seguinte, que era criar equipamentos que permitissem que a programação tivesse outro tipo de condições, e agora, já nesta fase, o grande objectivo da missão é a criação. E eu acho que a criação é a forma como uma cidade se emancipa, como uma cidade toma em suas mãos o seu próprio destino.
Que cidade seria Guimarães sem o projecto da Capital Europeia da Cultura que se realizou em 2012?
Há dois planos. O primeiro tem a ver com a visão que se tem de continuidade, que políticas culturais existem e se definem para um concelho, a questão da permanência e da regularidade. E depois, obviamente, quando criamos essa hipérbole do programa para um determinado ano, em que há uma abrangência e um impacto muito maior, o que se consegue, para além das infra- -estruturas que se podem gerar, tem que ver com a importância que a cultura tem na vida das pessoas. É como se fôssemos um surfista: estamos na maré baixa, vamos apanhar a onda, e, quando a onda quebra, ela já quebra num sítio maior. Significa que há uma consciência generalizada, um maior interesse por parte da população.
Qual era o ponto de partida?
A cultura em Guimarães foi sempre promovida por muitas associações que ainda hoje existem. O grande desafio foi, dentro da própria Capital, perceber como é que essas associações poderiam beneficiar de uma reestruturação, de um crescimento e de um olhar semi-profissional, ou seja, como é que poderíamos, a partir do voluntarismo, criar um caminho mais sólido.
O associativismo não lhe parece o melhor enquadramento?
Num ecossistema, isso tudo tem de existir. Para mim, o grande factor de observação da evolução das coisas está na rua, está naquilo que surge de toda a iniciativa espontânea do olhar independente. E também acho absolutamente fundamental que uma instituição não se sobreponha àquilo que já existe. Nem tudo tem de acontecer no Vila Flor. Tem de haver uma cena independente na cidade, tem de haver uma cena diversificada. A questão das associações é vital, na minha perspectiva, porque é aí que se experimenta muita coisa.
É fácil gerir a herança da Capital Europeia da Cultura?
Guimarães é apontada lá fora como exemplo de sucesso das capitais, que, normalmente, têm resultados muito duros e às vezes até destrutivos. Houve sobretudo um acontecimento que levou a que a Capital fosse muito importante, que foi a vivência do espaço público. Esta candidatura não construiu muitos edifícios, temos três edifícios que foram confiados à gestão da Oficina, que são o Centro Internacional das Artes José de Guimarães [CIAJG], o centro de residências artísticas em Candoso e a Casa da Memória, que é um centro de interpretação.
Não há elefantes brancos.
O que há é um desafio porque [o CIAJG] é outro edifício desta dimensão [do Vila Flor] e é um desafio porque mais uma vez Guimarães dá um passo arriscado, no sentido de ser um projecto à frente do seu tempo. É um projecto de artes visuais, não é um projecto de grandes massas. O grande risco que existe é que, quando tratamos do futuro, quando falamos do futuro, quando projectamos o futuro e o que queremos fazer, demora tempo a construir essa relação e esse entendimento, essa descodificação. O Centro de Criação de Candoso tem sido uma peça-chave, nuclear, na estratégia de tornar Guimarães uma cidade de criação. O CIAJG é também um museu distinto, afirmado do ponto de vista conceptual. Depois, há um pós-Capital, muito difícil de gerir, que resulta de duas coisas, essencialmente. Primeiro, todo o processo da Capital é complexo, sobretudo a parte financeira, porque é um processo de reembolso. Chegou um momento em que houve estrangulamento financeiro. E isto na relação com os artistas criou feridas que foi necessário resolver por quem cá ficou, que fomos nós. Outro aspecto tem a ver com o excesso, que é estarmos um ano inteiro a massacrar o País e chega o momento em que, por mais incrível que seja a nossa programação, as pessoas estão cansadas de ouvir falar de nós.
É uma espécie de ressaca?
É uma grande ressaca, que obriga a repensar a intensidade, a repensar como comunicar.
Em Leiria, nesta etapa, em que se está a preparar a candidatura, que impactos já se podem esperar?
O momento da Capital Europeia da Cultura é uma espécie de realidade aumentada de todo um percurso. Não pode ser uma coisa ficcionada, construída apenas para aquele ano. Quem vai analisar a candidatura, seguramente, vai olhar para o percurso que está a ser feito do ponto de vista programático, do ecossistema cultural, as políticas culturais do concelho. A ideia de um concelho forte, que aposta na cultura e que, por apostar na cultura e ter uma visão para a cultura, é premiado com esta atribuição. Portanto, o que acho que se vai jogar nestes anos, é, no fundo, testar a capacidade genuína dos concelhos de, realmente, quererem ou não ser a Capital Europeia da Cultura.
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Como é que funciona o modelo que encontraram em Guimarães, em que A Oficina, que é uma cooperativa, gere equipamentos que são públicos e tem o Município nos principais cargos dos órgãos sociais?
A cooperativa tem uma configuração em que uma percentagem maioritária é da câmara municipal. Sempre foi. A Oficina tem 30 anos, começou pelo património e artesanato, depois uma companhia de teatro, e, mais tarde, foi-lhe atribuída a gestão do [Centro Cultural] Vila Flor.
Há um outsourcing da gestão e da programação.
Sim, ou seja, a presidente da cooperativa é a vereadora da Cultura, depois A Oficina tem o seu corpo de colaboradores, somos cerca de 60.
Mas interfere nas decisões diárias, nas estratégias?
Há conversas sobre a missão, sobre as políticas culturais. No fundo, o que A Oficina faz é interpretar aquilo que são as políticas culturais do Município. A forma como pomos em prática é da nossa decisão.
Há autonomia.
Total.
E o orçamento é municipal, exclusivamente?
Não exclusivamente. É uma grande parte. Depois há uma gestão da Oficina, de procurar diversificar fontes de financiamento. Como é que se cria sustentabilidade? Quando falamos da atribuição do dinheiro, falamos de uma compensação que o Município faz ao preço que os bilhetes teriam de ter se nós fôssemos aplicar o valor que teríamos de receber da bilheteira para pagar determinado espectáculo.
E o modelo que vantagens e desvantagens tem?
Passámos uma fase no pós-Capital muito complexa, que foi quando o governo de Passos Coelho aplicou uma lei que impunha um rácio, ou seja, na prática, eu para receber três milhões teria de garantir uma receita de pelo menos milhão e meio. Isto é impraticável do ponto de vista artístico e cultural. Dizimou uma série de fundações e dizimou uma série de entidades culturais. Nós resistimos até que in extremis o PS introduz junto ao orçamento do Estado a abolição do rácio. E é aí que de algum modo A Oficina volta a estar em condições de poder retomar a sua vida normal.
Então, voltando à pergunta, vantagens e desvantagens?
A questão tem que ver com a forma como os políticos olham para a cultura e que políticas culturais se desenvolvem. Não sei indicar, em concreto, do ponto de vista legal, a melhor configuração jurídica. Tem muito que ver com o momento e com a formulação das leis. Mas, quando falamos de desafios pós-Capital, falamos disto. Como é que os projectos, os edifícios, tudo aquilo que é consagrado numa candidatura, tem condições para continuar.
Está a dizer que a sustentabilidade financeira na criação artística é uma utopia?
O que estou a dizer é que sem a criação, jamais teremos um País com uma identidade forte. Não é possível. Sem a criação somos nada. A criação é aquilo que nós temos a dizer ao mundo. E a cultura não existe sem a criação. Há coisas objectivas muito fáceis de demonstrar sobre o poder das artes. Por exemplo, quando estamos a falar de uma cidade que tem uma área devoluta, e porque os artistas, normalmente, têm uma vida mais precária, têm menos capacidade financeira, procuram essas áreas onde se instalam porque as rendas são mais baixas. O que acontece, isto está provado em Berlim, em Nova Iorque, em Amesterdão, está a acontecer em Lisboa, é que os artistas aportam a essa área toda uma dinâmica, todo um novo valor, depois aproveitado pelo capitalismo puro e duro, no sentido do imobiliário. Portanto, quando estamos a falar do processo de transformação de uma cidade, estamos a falar de pessoas com uma visão larga do mundo, que são capazes de intervir e criar valor. Se queremos diferenciar a nossa cidade, em primeiro lugar é preciso identificar os traços que a caracterizam. A partir daí há todo um processo de interpretação do que é ser contemporâneo e continuar a escrever essa história. Mesmo em Guimarães, a parte monumental, só pode ser valorizada a partir do momento em que há capacidade para construir o lado imaterial, contemporâneo, da cidade, que é isto que estamos a fazer. Esta ideia de que vêm as pessoas do Norte de Espanha ver um festival de dança, e de repente temos 800 pessoas numa sala a ver dança, temos os restaurantes cheios, os hotéis cheios, um protagonismo da cidade que faz com que as pessoas voltem. Essa dinâmica, da criação, vai gerar possibilidades, essas possibilidades geram uma coisa que é fundamental para as cidades hoje em dia, que é fixar o conhecimento, fixar a população activa que tem conhecimento, que traz a dinâmica e que a partir daí constrói toda uma história e um valor acrescentado. Estas dinâmicas não acontecem em cidades onde não há nada para fazer. E mais ainda num tempo de mobilidade em que rapidamente um apelo qualquer leva as pessoas para outro ponto. Portanto, a questão da criação tem muito que ver com esta ideia da autonomia: o que é que temos a dizer ao mundo a partir daqui? Sem isto, somos um entreposto, um bypass, uma passagem de coisas, que, quando acaba o encanto, fica o vazio. Tudo isto é muito complexo numa sociedade imediata, virtual, supostamente capaz de projectar uma realidade que não existe. Aquilo que é importante trazer de novo para as pessoas é a questão da escala humana. E aquilo que as artes também trazem é essa escala humana. Numa sociedade em que as pessoas não estão felizes, alguma coisa está errada. Só a partir da criação é que nós podemos mudar isto. E desse contágio. Dessa ideia de envolvimento, de criação de uma outra realidade, onde a humanidade esteja mais presente. Porque, para resumir, a arte e a cultura é que nos tiram da barbárie. E está provado, ao longo da história, que houve momentos em que as guerras surgiram por causa das ideologias da não diversidade. A questão das artes e da cultura tem muito a ver com este lado de humanidade.
E é especialmente importante num momento em que essas ideologias, precisamente, estão a ressurgir.
Totalmente, é fundamental. Os artistas são o último reduto da garantia de uma visão plural, de uma visão que questiona, de uma visão que constrói. Os artistas são aquela parte inegociável da liberdade. Eu sou aquilo a que chamo o construtor de contextos. Como é que preparo o momento em que o público se encontra com os artistas? Isto é quase uma espécie de modelo do século XX, se pensarmos bem a forma como a sociedade está estruturada, que é totalmente líquida e móvel.
Tentar trazer para o território pessoas que estão, constantemente, a escapar do território, nomeadamente, para as redes digitais.
Certo. Essa chamada desmaterialização do corpo, onde nós vivemos através de uma projecção qualquer. Não sair de casa, não estar presente. Mas, o que estamos a dizer às pessoas, é que elas têm de sair de casa, vir a um determinado ponto, que é o Vila Flor, chegar a uma bilheteira, comprar um bilhete, passar uma porta e encontrar a sua cadeira. Para fazermos isto temos de ter uma mensagem muito sedutora. O argumento tem de ser muito forte para que elas deixem outras coisas para trás e venham ter connosco, num tempo em que as coisas se deslocam e no fundo se enunciam onde as próprias pessoas estão.
Como é que encaram o facto de estarem a trabalhar em Guimarães, uma cidade média, como Leiria, em vez de o fazerem no Porto, Lisboa ou noutro centro urbano maior?
Temos de ter noção do todo. É preciso sentir a base, olhar para o ecossistema. O meu lugar é um lugar de incompreensão, no sentido em que o que faço é trabalhar as formas do futuro.
É inerente ao papel do programador?
Devia ser inerente a um projecto desta natureza, de qualquer teatro. Aquilo que nós tentamos fazer, em síntese, é trazer a Guimarães o mundo. O que nos interessa, em primeiro lugar, é a transformação do território. Não é encher salas, é como é que esta proposta, esta constelação de coisas, provoca uma transformação no meio, intervém no meio e faz com que o meio tome também iniciativas. E, a dada altura, ajudar também a que o território possa tomar conta daquilo que nós estamos a propor.
E aí afastam-se.
Vamos criar outras coisas. E assim sucessivamente. O segundo ponto é perceber que, do ponto de vista da população, há uma parte activa, que sai, que vai e que sente, e há outra parte que é mais sedeada. Como é que conseguimos trazer o mundo a Guimarães para que esta população mais sedeada consiga perceber o que está a acontecer. E, portanto, o pensamento da construção da programação não é uma colecção de espectáculos, é um caminho que se faz, de intervenção, que muitas vezes tem muito de conceptual, mas não é um conceptual no sentido de produzir um discurso demasiado codificado, é como uma casa, os alicerces não se vêem, mas estão lá. Temos de fazer toda uma pesquisa de coisas que produz um determinado discurso e depois esse discurso é apresentado de uma forma em que as pessoas têm ganchos que podem puxar e saber mais. Não é dizer às pessoas o que têm de pensar sobre as coisas, é dizer há aqui uma série de possibilidades.
Eventos maiores, como, por exemplo, festivais, são essenciais?
São fundamentais no sentido da concentração, da mostra e da celebração. Socialmente é mais forte concentrarmos uma proposta em alguns dias. E o festival é também um momento interessante para correr riscos. Onde há peças que são blockbusters há outras que são muito mais experimentais e nesta conjugação de factores nós levamos o público a perceber que não é assim tão complexo submetermo-nos ao risco e à surpresa.
Que influência tem estarem junto de Braga e bastante perto do Porto, uma situação semelhante à que Leiria tem com Coimbra e Lisboa?
Quando o Rivoli ressurgiu havia a ideia de que Guimarães estaria morta, porque tinha feito uma aposta na dança e o Rivoli é a casa da dança. Nós nunca mais parámos de crescer. Não estou a dizer que aquilo que se passa em Guimarães aplicado em Leiria vai ter o mesmo resultado, acho que quem está em Leiria deve estudar um pouco os casos de sucesso, mas ter esta leitura do território. As dinâmicas são diferentes e é preciso pensar sobre isso. A questão da proximidade, quer com Braga quer com Famalicão quer com o Porto, tem uma grande vantagem, se nós, os directores, que estamos à frente dos teatros, tivermos a capacidade de perceber que a diversidade nos territórios é importante. Acho que estas dinâmicas só criam um factor positivo na criação de públicos. Quanto mais projectos estiverem implementados no sentido de gerar consciência da relação com as artes, gradualmente, o público vai aumentando e vai circulando. Cada cidade tem de encontrar o seu traço distintivo natural e desenvolvê-lo.
Como é que abordam a questão da renovação de criadores, de garantir que o que estão a fazer continua amanhã com outras pessoas ou começa a ser feito hoje por outras pessoas?
Acho que vivemos um tempo de estagnação, de falta de ideias, falta de liderança. Tem que ver com essa responsabilidade de alguns de nós, que pensam isto todos os dias, que vivem isto todos os dias, darem um passo em frente e proporem alguma coisa que alavanque isto, que é, onde é que está a criação, quem são os novos protagonistas, como é que se faz a renovação? E aquilo que vou sentindo, é que há um esmagamento das administrações sobre as direcções. Não estou a falar de Guimarães, estou a falar em geral, quando olhamos para o que acontece em Serralves, o que acontece no CCB, percebemos que há uma tendência dessa decisão ser cada vez mais administrativa. E isso é perigoso, na minha opinião. É perigosíssimo, porque leva precisamente ao caminho contrário da renovação, há a tentação natural de se programar o que se conhece e não correr riscos. Tenho a obrigação de abrir espaço a novos protagonistas e nós temos feito isso, sempre. A renovação só se dá se nós formos espreitar a rua, sentir a rua, e passarmos muitas horas com os artistas a perceber qual é a urgência deles. Para mim interessa mais sentir qual é a urgência que um artista tem do que propriamente perceber se aquela obra está muito bem estruturada, se o seu resultado final é muito bom. Temos casos de criadores e criadoras que foram incompreendidos durante muito tempo e que depois, de repente, são muito adorados lá fora. O País tem de celebrar mais os seus artistas. Esta questão do erro e do risco é inerente. Não conseguimos criar novas linguagens se não dermos espaço à especulação, à pesquisa, à tentativa. Aquilo que temos feito é criar um caminho de introdução. Criámos um plano chamado PACT, que é o Plano de Apoio à Criação Territorial, com três degraus: o degrau para as residências, investigação pura, pesquisa pura, em Candoso. O segundo degrau, que são as bolsas, de apoio específico a projectos, alguém que tem uma ideia, quer desenvolver uma criação.
E o terceiro patamar…
É aquilo que chamamos o artista no centro. Uma relação mais larga, de três anos, onde nós criamos condições para que o artista faça duas, três, quatro obras e tenha todo o apoio da estrutura. Digamos que é um ecossistema muito complexo, cheio de coisas que se completam, de criação de nexos, mas tudo isto é uma espécie de equação permanente, de remodelação permanente. A nossa obrigação é estarmos sempre a reinventarmo-nos, de algum modo.
Director artístico e programador do Centro Cultural Vila Flor, o principal palco para as artes na cidade de Guimarães, do Centro de Criação de Candoso e de festivais, Rui Torrinha tem 48 anos e é natural de Vila das Aves, no concelho de Santo Tirso. Esteve no projecto Guimarães Capital da Cultura 2012, na equipa de programação de música. E nunca mais deixou de ser um nome relevante na afirmação de Guimarães, à escala nacional, enquanto território onde a criatividade se vive intensamente. Também tem percurso a imaginar propostas de cultura no Theatro Circo Café, em Braga, através de um produtora de eventos. E traz consigo a paixão da rádio: trabalhou durante cinco anos na Rádio Universidade do Minho. O festival internacional de dança GUIdance e o Westway Lab, que reúne público e profissionais da música, com concertos, residências artísticas e conferências, sãos dois eventos com a marca de Rui Torrinha, para quem o mais importante, no papel do programador, é a capacidade de antecipar o amanhã e provocar a mudança no espaço em que intervém.