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Durante muito tempo, na televisão, dedicava-se a satirizar vários poderes, desde a religião à política. Nos últimos tempos mudou esse registo. Porquê? O país perdeu a piada?
De maneira nenhuma. No outro dia estava a pensar nisso. Eu acho que há momentos de convicção na nossa vida. Algures entre os 30 e os 40 anos. Depois perde-se. Vou dar-lhe uma lista de pessoas que estão no auge dessa convicção: a Cristina Ferreira, o César Mourão, o Ricardo Araújo Pereira… estão no auge do seu momento. Eu no outro dia vi um momento meu dessa fase e quase corei de vergonha.
Qual foi?
A Diana Kroll está a tocar piano, num programa meu. E eu digo ‘deixa-me cantar contigo’ e interrompi-a. Hoje eu jamais faria isso. Teria o maior pudor em interromper uma senhora que está a tocar, porque eu acho que também canto… é qualquer coisa que com o tempo se vai alterando.
Passa com a idade? Passa com outras coisas. Às vezes lembro- me de mim, nessa fase dos anos 80, quando no final dos espectáculos o Cipriano me dizia ‘o Herman não acha que isto hoje foi um bocadinho de mais’? Porque me apetecia de repente ‘rasgar pano’, partir algumas barreiras. Hoje em dia a minha grande preocupação é sair do palco com toda a gente feliz. Como é que as minhas coisas picantes podem ser ditas de forma a que os pais não se preocupem com as crianças, porque elas simplesmente não chegam lá. Basta não usar palavrões. Para quê ferir as pessoas politicamente? Vale a pena bater no Sócrates, se ele já está mais do que batido pelo Ministério Público e [LER_MAIS] pelos jornais? Não é muito corajoso… Gozar com as fragilidades do sistema se elas estão mais que gastas? Não é apanhar boleia da fraqueza alheia para fazer gargalhadas? Tenta lá agora fazer gargalhada de maneira a não menorizar ninguém que ali está…
É isso a maturidade?
De certa maneira. Porque à segunda estou com autarquias comunistas, às terças com autarquias de direita, às quartas nos Isaltinos Morais… o que me interessa é, sem perder a piada e a malandrice e acutilância, ter um reportório rápido e giro que não viva à base de ferir alguém.
Ou seja, conseguiu chegar a esse estádio?
O que é muito difícil! É o mais difícil deles todos.
Disse recentemente numa entrevista que é um bocadinho esquizofrénico, politicamente. Completamente.
Mas considera-se mais de direita ou mais de esquerda?
Digo mais: nalgumas coisas considero-me até de extrema direita. Hoje mesmo pensei o seguinte: um emigrante deu três facadas na mulher. Vai ter prisão perpétua porque está na América. Eu não posso estar de acordo com um sistema como o português, em que um tipo esteve preso 20 anos, saiu e matou uma freira. O que é que ele tinha feito? Nada de especial… tinha só violado uma criança e matado a mãe. Este homem não pode ficar livre nunca mais! Aí não sou progressista. Mas dou-lhe uma catrefada de coisas onde sou. Na defesa dos direitos, por exemplo. Sou feroz na defesa das minorias. Se eu visse alguém fazer uma piada racista, mesmo que fosse porque estava com os copos, nesse dia era crime público e ele já não ia dormir a casa. Há coisas em que sou completamente implacável.
Nunca se envolveu politicamente, ao longo da vida? Não, porque não consigo, com isto não tenho onde entrar. Apoiei um dia o Mário Soares porque achei que era importante tomar posição naquela altura.
Na mesma entrevista admitia a hipótese de votar Bolsonaro, se vivesse no Brasil. Continua a pensar da mesma forma?
Não foi isso que eu disse. Ainda bem que falamos nisso. Eu disse que, vivendo no Brasil, percebe-se porque é que tanta gente votou Bolsonaro. Não quer dizer que eu votasse. Mas o país está de tal maneira entregue à confusão que as pessoas precisam de um populista com mão de ferro para se sentirem felizes. Como aconteceu com o Trump na América, que é um caso sério. No outro dia estive com uns amigos americanos que passaram por cá – são modernos, são giros, são músicos – mas como moram no Texas, votam no Trump. Tendo a noção de que ele é um atrasado mental.
Mas há um lado muito perigoso no crescimento do populismo, nomeadamente para os artistas e para a criatividade.
Para toda a gente! Por isso é que nunca devemos perder a clarividência e o sentido da direcção em que devemos lutar. Mas não há dúvida nenhuma que cheguei a uma altura em que sinto que a liberdade para funcionar tem de ser condicionada, tem de ser com regras. Aquela utopia dos anos 60 do “é proibido proibir” é mentira. O ser humano é perverso. Tenta sempre aumentar a sua liberdade esmagando a liberdade do vizinho. Portanto tem de haver regras muito fortes: a tua liberdade é total até ao teu muro. Saltas o muro, é crime.
Quando o hotel Eurosol era o “quartel-general”
Aos 65 anos, o verdadeiro artista voltou ao ponto de partida: os espectáculos por todo o País, sozinho em palco ou com uma orquestra. Continua a ter um programa na RTP, Cá por casa, que vai para o ar às quartas-feiras. De Leiria guarda boas memórias: “foi um sítio muito importante no arranque da minha carreira, de tal maneira que por vezes fazia do hotel Eurosol o meu quartel general. Cheguei a ficar sete e oito dias seguidos, porque tinha sempre muitas coisas na região”.
De resto, há outro marco que não esquece no distrito: o Manjar do Marquês, em Pombal, na sua primeira versão, junto às bombas da Shell, à beira do IC2. “Foi lá que conhecia a Amália”, recorda. Ficou-lhe para sempre o sabor dos pastéis de bacalhau, ele que não se nega às melhores iguarias.