A Void é um exemplo da tradicional e romântica empresa de software que nasceu numa garagem?
Quase. Tem já dez anos de história e não surgiu numa garagem, mas na sala da casa da mãe do Marco Cova. Ele e o Hugo Larcher, de quem fui colega na secundária Domingos Sequeira, de Leiria, fundaram a empresa e são os sócios-fundadores. O Marco gere a estrutura informática e a arquitectura de software, o Hugo é programador sénior de frontend. Eu assumi o desenvolvimento de negócio e parte comercial. Em 2012, surgiu o nosso primeiro cliente internacional de maior dimensão, que começou a exigir um crescimento rápido da força de trabalho da empresa. A Void procurou uma resposta no Instituto Politécnico de Leiria (IPL) e cresceu, num ano, de quatro pessoas para 12. Eu entrei em 2016, porque a empresa estava muito alavancada num só cliente e direccionada para um só produto. Estava na hora de dar um passo para nos diversificarmos e nos apresentarmos ao mercado. Começámos a procurar novos clientes nos EUA e, hoje, o tal cliente que era o mais importante em 2016, quase não tem expressão na nossa facturação. Temos 25 colaboradores e, em Setembro, iremos admitir mais quatro pessoas. Aqui, quase todos os programadores – muito jovens – saíram do curso de Informática da ESTG, do IPL.
O facto de terem acordos de confidencialidade dificulta o trabalho, no momento de angariar novos clientes?
É verdade, mas há alguns exemplos que posso divulgar. A nível de clientes internacionais, estamos a desenvolver uma plataforma de gestão de frotas de camiões, para um cliente que tem cerca de 200 veículos mas que pretende, depois, oferecer a solução ao mercado. Criámos também uma app para uma cadeia de restaurantes dos EUA que tem uma área privada, só para membros, e o acesso é feito através dessa aplicação móvel, que também permite desbloquear conteúdos multimédia, através de Realidade Aumentada. Ou seja, há quadros na parede e se lhes apontar- mos a câmara do telemóvel eles animam-se ou falam. Temos ainda o Dream Football, uma plataforma de scouting de talentos que criámos há dois anos e onde um dos accionistas é o Luís Figo, que tem lá as Escolinhas do Figo. Os miúdos podem fazer o carregamento de vídeos e serem descobertos por olheiros. Nós criámos as aplicações web e mobile. A app móvel permite gravar “no passado”, ou seja, apontamos a câmara a um jogador e, em vez de gravar um vídeo com uma duração enorme, grava um clipe com um passe, um remate que seleccionamos ou o que quisermos e, no final, montamos um vídeo que se carrega para toda uma rede social completa, com gostos, comentários, apoios, e partilhas. O Figo e o Dimas seleccionam regularmente os melhores e os jovens vão subindo no ranking. Um dos projectos que temos em curso há mais tempo e que gerou a nossa sucursal em Los Angeles (EUA) é um serviço de preservação digital de dados. Isto é, uma espécie de backup a muito longo prazo. No dia-a-dia, usamos discos, CD, DVD ou a cloud para guardar fotografias e documentos e o horizonte temporal desses suportes é de cinco ou dez anos. A longo prazo – 20, 30 ou 50 anos -, a integridade dos dados tem de ser preservada e verificada e a obsolescência dos formatos é outro obstáculo. Quem tem cassetes de vídeo Beta ou mesmo VHS sabe do que estou a falar. É preciso verificar se ainda se consegue aceder à informação. O nosso cliente, onde temos uma participação e é nosso sócio, oferece um serviço de preservação num data center em Los Angeles e utiliza um software que extrai os metadados e verifica essa integridade. Os clientes principais são todos estúdios de Hollywood que extraem permanentemente mais-valias daqueles ficheiros, com lançamentos especiais, remasterizações e de aniversário dos seus filmes. Valem milhões e é fundamental que os dados não se percam. Entre os clientes de referência onde o nosso software é utilizado, está a MRC que produzia a House of Cards e os filmes do Iñárritu, ou a Zoetrope, do Francis Ford Coppola. A Universal está a passar um mau bocado porque, em 2008, teve um incêndio que destruiu os originais de uma série de obras de referências.
E também estão presentes em Nova Iorque.
Sim. Através do João Francisco, que também foi nosso colega na Domingos Sequeira, e que também trabalha na área de produção de multimédia. A dada altura, falámos e surgiu a ideia de colaborarmos. Ele, que tem um escritório em Manhattan, percebeu que, na rede de contactos dele, poderia angariar muitos negócios. Temos já uma série de oportunidades e o primeiro contrato, com a unidade neo-natal do hospital Mount Sinai West, uma referência nos cuidados de saúde, pode concretizar-se em breve.
A Void também está presente em Colónia, Berlim e em Berna.
Isso é recente. Temos um comercial com uma rede bem estabelecida que identificou oportunidades de negócio e está a fazer prospecção para nós, na área da preservação digital. Hollywood está a alavancar este negócio, mas ele tem muitas aplicações noutras áreas, como na preservação dos registos clínicos. Alemanha e Suíça são os países onde nos poderemos posicional melhor na Europa. Nós somos prestadores de serviços de valor acrescentado, que implicam inovação, tecnologias de ponta, de blockchain, Inteligência Artificial (IA), Realidade Aumentada… estamos mais próximos de um arquitecto do que de um construtor civil. O nosso cliente ideal tem de ser alguém que valorize o valor acrescentado por essas tecnologias.
O facto de a Void estar sediada em Leiria não dificulta os negócios?
Pelo contrário. Estamos perto do IPL e sentimos competição pelos alunos de Informática. Há 0% de desemprego, ou perto disso, na área. O Web Summit, que eu pensava que seria apenas um hype inicial, afinal, gera visibilidade e traz pessoas e negócios, tenho de admitir. Trouxe para cá inúmeras empresas tecnológicas e já há escassez de pessoal. Ser local é importante e embora estejamos aqui, os alunos de Lisboa conhecem-nos e sabem o que fazemos. Há muitos cá que não querem mudar de cidade, mesmo a ganhar duas a três vezes mais em Lisboa. A qualidade de vida em Leiria compensa bem a diferença salarial. O típico programador gosta de tranquilidade. A nível de angariação de negócios, não é uma desvantagem porque o nosso mercado é no estrangeiro. Para quem está em Los Angeles ou Nova Iorque, Leiria ou Lisboa são iguais. Se tiver de vir a Portugal, sair do aeroporto e fazer o caminho de carro, para eles, é normalíssimo. Se forem para Londres, até ao centro, têm uma viagem de duas horas ao volante. Em termos do mercado nacional, tenho de dizer que até, ao ano passado, ele teve uma expressão pouco relevante para a Void. Era 20% do total, mas, este ano, as coisas mudaram e é já metade. O empresário português está a amadurecer e a perceber a mais-valia do software à medida, em vez de investir imenso em soluções genéricas, tiradas de uma prateleira. Desenvolver software faz-se a partir de qualquer sítio, do Mundo e o nosso País é um sitio tranquilo, seguro, onde as pessoas vivem bem, trabalham com condições, são poliglotas, viajam e são cosmopolitas. Portugal trabalhou, vendeu-se bem e há multinacionais estrangeiras a fixar-se cá. É preferível vir aqui do que ir à Índia. Houve um efeito benigno que criou pressão no mercado de trabalho.
Qual é o contributo do Grupo TICE, da NERLEI, para a região?
É um grupo de trabalho de empresas da área da tecnologia da informação para a partilha de experiências, desafios e conhecimentos e criação de novas propostas para a região. Acima de [LER_MAIS] tudo, serve para divulgar o que as empresas tecnológicas de Leiria conseguem e estão a fazer. Empresas que até competem entre si, mas que, no TICE, cooperam? Rivais, em muitos casos. É uma atitude de “coopetição”, porque todos temos a ganhar com a partilha de conhecimento. Somos rivais, mas há muito trabalho para toda a gente, não andamos a pisar os calos uns dos outros e não andamos atrás dos mesmos clientes. Todos temos uma área onde nos movimentamos melhor e, melhor do que dizer que não temos serviços para uma necessidade específica de um cliente é apresentar uma solução: “não faço, mas tenho um parceiro que posso recomendar”. Temos um mantra; se fizermos coisas boas, mais coisas boas acabarão por acontecer. São karma points (risos). As nossas reuniões no Grupo TICE são muito abertas e transparentes – temos lá o Politécnico representado -, fazemos tertúlias com regularidade, onde há interacção e discussão. Temos pessoas aqui a trabalhar porque nos conheceram numa dessas conversas. O facto de o IPL conhecer o que as empresas precisam é excelente, e excelente é que possa acontecer num fórum onde estão a Void, a inCentea, a Digi- delta, a Trigénius, a Digiwest, a HES, a SoundParticles…
Leiria está a criar infraestruturas no topo norte do estádio Magalhães Pessoa para acolher empresas de base tecnológica ou assentes na criatividade e economia digital. Será uma mais-valia?
Vai ser muito bom. É claro que posso sofrer de visão em túnel, porque, para mim, tecnologia é a área com maior potencial para o sucesso e desenvolvimento. Se essa iniciativa se concretizar conforme está previsto – e a Void e as empresas da área tecnológica, da região foram convidadas a dar a sua opinião -, será uma âncora brutal. O projecto é muito bom, está bem pensado e promete dar boas condições. Além de servir as empresas da região, irá atrair outras de fora. Em Leiria, têm aparecido muitos interessados em fixar-se e que se juntaram ao Grupo TICE. Já me ligaram a perguntar se, na torre do C.C. D. Dinis, onde temos a nossa sede, há escritórios vazios, porque ouviram dizer que é um bom local para montar uma empresa tecnológica. O topo Norte já é outra coisa. É feito quase de raiz e tem estacionamento… será uma coisa mais técnica. Poderá ter uma dimensão maior e permitir atrair outro tipo de players. Já tive pessoas a ligarem-me de Lisboa porque, no TICE, alguém disse que eu poderia saber se haveria espaços no C. C. Dinis, para meter 40 pessoas. Mas não há, infelizmente. Se o topo Norte já estivesse pronto, poderiam ir para lá.
Qual é a importância da Startup Leiria?
Fomos seus fundadores com o IPL, com a Câmara, a Lusiaves, a inCentea, a Digidelta, a La Redoute… Entretanto entraram mais associados. Tivemos agora o primeiro programa de aceleração e está para começar o segundo, que irá ter um prémio monetário. A ideia é trazer empresas da região, que podem não ser tecnológicas, mas que sejam startups – empresas embrionárias com potencial de crescimento. O primeiro correu muito bem. Trouxemos mentores muito experientes, levámos-los à Web Summit, demos exposição e transformámos muitos negócios. Temos cá o exem- plo de uma startup muito interes- sante que é a Sound Particles, do Nuno Fonseca, que faz parte do TICE e há outras com muito potencial. A Startup Leiria é quase uma extensão do Grupo, onde se retribui para o ecossistema empresarial.
A Void trabalha com Machine Learning que é um dos passos para a Inteligência Artificial (IA). Após a redução de funcionários em chão de fábrica por robots, no futuro, há a ameaça de as maquinas também substituírem os criativos e profissões intelectuais?
O tema tornou-se mediático e polémico, porque há uma expectativa exacerbada sobre o que a IA é. Na área criativa, estamos muito longe de isso acontecer. Pode imitar o ser humano mas jamais será verdadeiramente criativa. Posso ordenar que a IA me faça um quadro “tipo Van Gogh”… ela vai analisar todas as obras do pintor e fará algo “tipo Van Gogh”, mas não será um Van Gogh. Até pode ser um Starry Night muito bonito mas que valor tem isso? Falta o conhecimento, a dor, o sofrimento… Para perceber o que a IA pode fazer bem, uso uma heurística: “qualquer tarefa que um humano consiga perceber/concretizar em menos de um segundo, a IA conseguirá fazer melhor e mais rápido”. Neste ponto de vista, os carros com condução autónoma serão uma realidade. Requer muito trabalho e tentativas para afinar. Fará muito erros, mas aprenderá com cada um deles. É uma inteligência que não é brilhante… A IA é o marrão da sala de aula. Aprende à força bruta, mas aprende. Mas ainda estamos muito longe e não vejo nada que possa ser minimamente assustador. Jamais vi uma IA ter vontade de fazer algo, espontaneamente.
Engenheiro Civil e Informático
João Mota, 42 anos, é natural da Bidoeira de Cima (Leiria), estudou na Escola Secundária Domingos Sequeira e sempre teve uma paixão pela Informática, porém fez um longo percurso até se juntar a esse amor de uma vida.
“Programava desde muito novo e sempre quis estudar Engenharia Informática. Quando acabei o secundário, candidatei-me ao Instituto Superior Técnico, mas o meu pai, que tinha um gabinete de projecto de Engenharia Civil, precisava de ajuda… convenceu-me a seguir para o IPL e tirar Engenharia Civil, na ESTG, em Leiria, depois de ter entrado em Lisboa, em primeira opção, em Informática.”
No fim do curso, começou a trabalhar na Câmara de Leiria, passou pelo programa Polis e a Informática foi ficando para trás.
Transitou depois para a Nordex, empresa alemã de energia eólica e seguiu-se a Infusion, empresa do Grupo Meneses da mesma área. Percorreu boa parte da Europa a criar subsidiárias da empresa.
“Nunca andei tanto de avião. Pelo menos, duas vezes por mês. Foram anos de muito trabalho onde ganhei muita experiência.”
O sonho da Informática ia ficando cada vez mais longe.
Em 2013, o grupo alienou a empresa e João transitou para a exploração de mercados no Norte da Europa.
“Em 2016, o sonho voltou. Nem que tivesse de começar tudo de novo.” Aconteceu marcar um café com Marco Cova, um amigo, fundador da Void que já não via há anos, que procurava alguém que pudesse ajudar a empresa a expandir a carteira de clientes.
“Foi um bom encaixe”.
Fez o curso e tornou-se sócio e administrador, com a passagem da Void a SA, em 2017, em conjunto com o amigo e Hugo Larcher, o outro sócio.