Ultimamente tem sido sempre assim, e o recente Red Bull BC One UK Cypher B-Girling, que as fotos documentam, é disso exemplo. No epílogo da battle decisiva, os jurados não têm quaisquer dúvidas e levantam a folha com o nome da b-girl Vanessa. Ela ajoelha-se, comovida, mas feliz por ter derrotado a b-girl Rawgina e, dessa forma, garantido um lugar na final mundial do evento.
É uma bela história de resiliência com final feliz. E tudo começou em 2014, quando Vanessa Farinha pegou nas malas e mudou-se para Londres. Deixou a família em Leiria e partiu. Porquê? “Precisava de um desafio”, diz. Tinha acabado o estágio como professora de dança numa academia em Alverca, mas queria mais. A solução estava para lá do Canal da Mancha.
[LER_MAIS]Habituou-se rapidamente ao frio, à chuva e aos dias cinzentos, porque só lá poderia acordar, todas as manhãs, de sorriso nos lábios, a fazer o que realmente gostava, num mundo com maiores apoios e variadas oportunidades, recompensadas com outro tipo de remuneração.
Chegada à capital britânica, rapidamente percebeu que o estilo que tinha adoptado era visto com outros olhos. Dera os primeiros passos de breakdance – ou breaking – na Estação do Oriente, com um amigalhaço b-boy, quando trocou a pacatez dos Pousos e as aulas de hip-hop no ginásio à porta de casa pela agitação de Lisboa para frequentar um curso de dança.
Começou a treinar mais e a entrar em competições a ganhar nome e fama nas afamadas battles. Com as primeiras vitórias, a b-girl Vanessa deixou de ser uma ilustre desconhecida e começou a seleccionar as competições de maior peso para mostrar a sua alma.
“Atingi um nível que nunca imaginei. Os meus ídolos são agora os meus concorrentes”, exclama, convicta de que “dedicação e persistência fazem os sonhos tornar-se realidade”.
Ganhou competições onde “nunca na vida” pensou, sequer, ter a “oportunidade de pisar o palco”, como o World B-Boy Classics B-Girling, na Holanda, o Porto World Battle, em Portugal, o Battle Hip-Opsession, em França, o Battle of Est B-Girling, na Estónia, e até o já citado Red Bull BC One UK Cypher B-Girling, no passado mês de Abril, no Reino Unido. Pode ver o vídeo da exibição de Vanessa aqui.
Para ela, o breaking é tudo. É profissão, é hobby, é paixão e até é terapia. “Quando os momentos mais difíceis chegam, sei que posso sempre ir treinar e usar a única coisa que está sempre lá, que é a dança, nem que seja para abstrair dos problemas.”
Jogos Olímpicos
Entretanto, no horizonte, avista-se uma nova competição. A maior de todas. O breaking deverá estrear-se nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024. Os organizadores propuseram ao Comité Olímpico Internacional a inclusão desta modalidade, mas também a continuidade do surf, do skate e da escalada, que se estreiam em Tóquio’2020.
“Queremos ligar-nos a desportos que são disputados em todo o mundo para darmos aos Jogos uma dimensão mais urbana, ligada à natureza, mais artística”, anunciou o presidente do comité organizador, Tony Estanguet. [LER_MAIS] Os quatro novos desportos vão juntar-se aos 28 já previstos no programa, mas terão ainda de ser validados pelo Comité Olímpico Internacional em Dezembro do próximo ano.
Apesar de desejar muito mais “inspirar e motivar” do que propriamente ganhar campeonatos, Vanessa ficou feliz com a notícia. “Vai dar uma visibilidade que nunca existiu. As pessoas olhavam com algum desprezo e até repulsa, que era o estilo de rua que não serve para nada, que era limpar o chão, que era dançar com os sem-abrigo. Nessa plataforma tão grande vão perceber que é muito mais do que dança e que leva pessoas em dificuldade a ver uma luz ao fundo do túnel.”
Para a b-girl, o breaking não vai ser uma entre outras. A modalidade vai, com toda a certeza “apimentar o formato”. “Sempre que pensamos em Jogos Olímpicos pensamos em stress, foco, nervos e tensão. Acredito que será mais divertido, improvisado e excitante. E traz dança, acima de tudo, que eleva o espírito.”
Em 2024, precisamente uma década depois de ter saído do país, Vanessa Farinha terá 32 anos e pode muito bem estar a caminho de um momento histórico: participar nos Jogos Olímpicos. Estar em Paris “será uma possibilidade”, “um sonho”, mas o percurso até lá chegar não será fácil.
“Cada vez acho mais difícil competir com os jovens de agora, que fazem tudo parecer tão fácil. Mas também sei que os b-boys e b-girls que admiro atingiram o auge quando chegaram aos 30.”
Para já, há que pensar nos desafios mais imediatos. No final de Junho, irá representar Portugal no campeonato mundial, o World Dance Sport Federation World Breaking Championship, na China, que terá o formato semelhante ao dos Jogos.
Se for bem sucedida, dará um passo importante rumo à qualificação olímpica. Este é um mundo de oportunidades, porque “qualquer pessoa pode ganhar desde que traga a melhor performance”. Basta ser competente. “Mal posso esperar para ver o que a vida me reserva.”
“Quebrar barreiras”
A dança que se faz de pé (toprock), a dança que se faz no chão (footwork) e as partes acrobáticas (powermove). O breaking pode ser dividido em três partes, assim, de uma forma muito resumida. A principal virtude que a b-girl Vanessa utiliza para derrotar as rivais é precisamente combinar “de forma original” as acrobacias e o trabalho de chão.
“Ser uma arte dominada maioritariamente por rapazes faz-me querer quebrar barreiras e mentalidades. É super desafiante e faz puxar os limites do que pensamos ser possível. As raparigas trazem outra abordagem, o que é muito interessante e inspirador”, sublinha.
Em mentalidade, o breaking “é muito similar às artes marciais e ao boxe”, mas com a adição de “música energética que faz com que a adrenalina esteja no máximo”. “Quando pisamos o palco não há tempo para dúvidas. É tempo de trazer o nosso melhor jogo e dar o nosso melhor show. No fundo, mostrar que merecemos estar naquele lugar”.
Ainda assim, “nem sempre ganha o melhor bailarino, aquele que tem os melhores movimentos”. As battles são jogos mentais, há estratégia e táctica. O que jogar melhor ganha, desde que não envolva o toque. “Não é permitido e dá direito a desqualificação.”
Os dois dançarinos, que se defrontam à vez, não sabem que música o DJ vai tocar. A improvisação é, pois, fundamental. “A adaptação tem de ser rápida. Existem combinações de movimentos que são premeditados, mas combinar com a música é desafiante.”
O júri avalia a performance de acordo com o “quão original, interessante e extraordinária” foi a adaptação da dança à música. “O mais importante é tornar tudo tão natural que, mesmo que seja improvisado, não dê para perceber.”
No próximo sábado, dia 1, a b-girl Vanessa estará em Leiria para ser membro do júri no Street Dance Awards, evento que se irá realizar no Mercado Sant’Ana e no Teatro José Lúcio da Silva. Será que também vai dar um showzinho?