Entre a Feira da Ladra e os mercados de Belém e do festival Andanças, entre o recinto do Avante e a Feira Internacional de Artesanato de Lisboa, Vasco Ramalho e Paula Pão Alvo pisam os quilómetros de um circuito alternativo, que é também um modo de vida. Com eles levam a indispensável bagagem com o selo Cosmic Shoes: "calçado criativo", que "de tradicional não tem nada", garantem, produzido por métodos artesanais a partir de couro de curtimenta vegetal e bio-degradável, isto é, livre de metais pesados, uma escolha que acima de tudo expressa respeito pelo meio ambiente, ou seja, o respeito deles pelo planeta que é de todos.
Botas, botins, sandálias e sapatos, de várias cores e feitios, alguns pintados à mão, outros decorados com estrelas e meias-luas, também pétalas e espirais, são o espelho de um olhar pessoal, que Vasco Ramalho começou a manifestar muito jovem, na oficina do pai, com quem aprendeu o ofício. "Não gostava dos sapatos que o meu pai me dava e às tantas peguei numa forma e fiz uns sapatos de raiz, para mim". Da adolescência, mantém a busca pela originalidade – "procuro fazer sapatos diferentes, que funcionem e que me dêem gozo" – e junta-lhe a primazia da arte (por exemplo, a arte com que se vive) sobre o negócio. "Não somos muito comerciais e temos outros princípios na vida. De certa maneira, achamos que isto não é só ganhar dinheiro. Não pode ser".
As colecções Cosmic Shoes – à venda online no site com o mesmo nome – são assim uma espécie de declaração de interesses, um testemunho de quem defende a busca por "mais sentimento, mais conhecimento, mais auto-conhecimento, mais espiritualidade, mais ecologia", no sentido de que cada um, criador ou cliente, "tem o seu caminho" para percorrer (de preferência, com um bom par de sapatos nos pés).
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Feitos "com amor" no mesmo espaço que partilhou com o pai, os modelos imaginados por Vasco Ramalho, em parceria com Paula Pão Alvo, surgem na loja digital marcados com preços que, no caso de algumas botas e botins, chegam aos 230 euros.
Na Benedita, terra de sapateiros, onde nas últimas décadas as fábricas substituíram as oficinas, com novas ferramentas, à procura de produções maiores e mais rápidas, são cada vez menos os que trabalham com processos exclusivamente manuais. Mas nem por isso se perde o conhecimento acumulado ao longo de gerações, acredita Vasco Ramalho. "Muitas pessoas que trabalham em fábricas de sapatos são às vezes mais artesãos do que algumas que andam aí a vender artesanato. Por exemplo, para fazer o acabamento de uma sola: a máquina está lá, mas eu vou lá ou vai lá outro e os trabalhos são sempre diferentes. São as mãos das pessoas, a sensibilidade, que contam. Usam-se as máquinas, mas há sempre as mãos, e as pessoas trabalham com elas".
A conversa circula entre máquinas, ferramentas, peles empilhadas e caixas com calçado pronto, quando, a um canto da oficina, Vasco Ramalho agarra a bota que parece saída directamente de um episódio da Guerra dos Tronos, de um encontro entre personagens medievais. "Esta foi das mais loucas que fiz", sublinha. "É mesmo bota das origens dos tempos, só tem um costura atrás e tudo isto é uma pele única". Tem pinta, é inegável – e o criador explica porquê: "É um trabalho técnico difícil. Dá muito trabalho a fazer. É um modelo que tem muitos séculos, não é uma invenção minha, mas é uma boa bota". Tem pinta e tem também um custo: a dificuldade de comercialização num mercado que procura mais facilmente o preço baixo. "Estas não vendo por menos de 200 euros. Nem começo a trabalhar. Demoram muito tempo a fazer".