É uma mistura curiosa que se torna o desafio da vida do professor, Patrício Marques. Uma espécie de volta ao Mundo em duas horas e meia.
Rajni Devi ainda mal fala português. Veio da Índia há pouco mais de um ano, ao lado do marido, Karam Singh, e trouxeram os três filhos adolescentes. Em noites como esta, os dois rapazes e a rapariga acompanham os pais.
Os jovens já se vão desenrascando com a língua, revelando-se uma preciosa ajuda na tradução quando necessário. Ela tem 38 anos, ele 48. Moram na aldeia da Charneca, na periferia de Pombal, e estão felizes com a nova vida: ele é serralheiro numa empresa da região, ela está em casa. “Toma conta das crianças”, explica o marido. “As crianças já são grandes… mas é assim a nossa cultura”, remata Karam. Rajni sorri mais do que fala, enquanto arruma o caderno onde treina a caligrafia: a letra A redonda e grande o bastante, caracteres bem alinhados.
“É praticamente alfabetização, o que estamos a fazer”, há-de contar mais tarde Cristina Costa, professora de francês e responsável pelo Centro Qualifica do Agrupamento de Escolas de Pombal, que, na verdade, tutela este curso de português para falantes de outras línguas.
Duas vezes por semana, entre as 20 e as 22:30 horas, a sala 102 da Secundária de Pombal abre uma janela para o mundo, através dos 25 alunos daquela turma. E o grupo de indianos destaca-se, este ano. Moram todos juntos. No princípio, iam de táxi, mas juntaram as economias e compraram um carro.
Karam e o amigo Neelam Devi, da mesma idade, foram os primeiros a chegar a Portugal. “Vivíamos na Índia com muitas dificuldades”, contam, sem se alongarem em demasiadas explicações. Foi numa reunião de pais na escola Gualdim Pais – onde estudam os filhos – que souberam do curso na secundária. Inscreveram-se todos e são rigorosos na assiduidade.
Aliás, essa é uma característica comum, salienta Cristina Costa. “São alunos que querem mesmo aprender, porque precisam de dominar a língua. E é tudo diferente”. O professor Patrício Marques, docente há mais de três décadas, soma já meia-dúzia de anos nesta experiência. “É um grande desafio, mas tem sido muito interessante.”
Tem sido professor, tradutor “e um bom amigo”, conta uma das alunas, imigrante há 20 anos em Portugal.
Aprender a língua 20 anos depois
Na verdade, o que acontece naquela sala 102 não é comparável com nada que se viva noutra sala da escola, no ensino regular. O grupo faz-se de gente muito diversa, culturas díspares e [LER_MAIS] idades que variam entre os 20 e os 63 anos. A mais nova é a ucraniana Vikyoria Magalatii, o mais velho o compatriota Pavlo Opatsky.
“Estou a estudar a língua para poder trabalhar um dia em televisão”, atira sem rodeios a jovem do Leste, que chegou a Portugal já casada, quando ainda nem tinha completado 20 anos. É tímida. Contrasta com os dois amigos que respondem por ela: Nazar Honchar e Nazarii Tymus.
São amigos, nas aulas, ficam juntos e dominam a turma com um humor peculiar. O primeiro trabalha ao balcão, na pizzaria Mr Pizza, em Pombal, o segundo habita e mora na Guia, com os pais.
“Trabalho num armazém, com uma empilhadora. Mas quero ver se consigo a equivalência, para poder trabalhar na minha área, que é informática”. Nazarii é, dos três, aquele que fala português de forma mais fluente. Apesar de os imigrantes do Leste terem fama de grande facilidade em aprender a língua portuguesa, o grupo – que é o maior da turma – tem níveis muito diversos de compreensão da língua de Camões, Pessoa e Saramago.
Os mais velhos estão em Portugal há cerca de 20 anos, fizeram parte da primeira leva de ucranianos, moldavos e russos que chegaram ao País à procura de uma vida melhor, numa época em que a nossa própria emigração parecia ter abrandado.
Muitos desses imigrantes acabaram por regressar aos países de origem, mas Marya Chernovtsan, 59 anos, acha que já não seria capaz de empreender a viagem de regresso. “Portugal é a minha segunda pátria. Sabe o que costumo dizer? Que tenho duas pátrias!”, diz. Ao lado o marido, Dmytro Chernovtsan, mantém-se reservado.
Marya é mais extrovertida, usa e abusa da gíria e expressões populares, terminando todas as frases com um omnipresente “graças a Deus”. Chegou a Pombal há quase duas décadas e trazia na bagagem dois cursos superiores, na área financeira e jurídica, além de um passado que inclui uma passagem por Chernobyl, e que daria um documentário. Por cá, o melhor que conseguiu foi um emprego estável como empregada doméstica de uma família da Charneca.
“São pessoas muito boas, já temos uma relação de amizade de muitos anos”, avança, antes de contar que, todos os anos, o casal vai de férias “dois meses seguidos para a Ucrânia”. “Quer os patrões gostem quer não”. Afinal, é lá que estão, além da mãe de Marya, com 83 anos, os filhos, os netos, e já uma bisneta. Por que, só agora, o casal decidiu aprender a língua?
“Porque nos fazia falta saber escrever”, justifica ela. Dominar a língua na vertente escrita foi também a razão que levou outro casal ucraniano a procurar o curso, ao fim de 20 anos em Portugal. Gennady e Svetlana Markelova trabalham numa propriedade agrícola na aldeia de Bonitos, freguesia de Almagreira (Pombal). Tal como os amigos, não pensam deixar Portugal.
Ao fundo da sala, está um outro grupo do Leste. O mais velho do curso, Pavlo Opatskyy, 63 anos, está há 18 em Portugal e faz a viagem de Condeixa a Pombal, duas vezes por semana, para assistir às aulas. Na Ucrânia foi oficial do exército, aqui é manobrador de máquinas de alcatrão.
É parco em palavras, como o amigo Vasyl Kabatsi, russo de 51 anos, que, por exemplo, deixou para trás comissões de serviço na Sibéria. Aqui, sorri sempre que alguém se queixa do frio. No grupo, incluise ainda Tetiana Vays, uma bonita ucraniana de 43 anos que vem de Ansião para assistir às aulas. Chegou há 17 anos, trabalha numa fábrica têxtil de Avelar e, só agora, encontrou disponibilidade para aprender a escrever português.
De Cuba, com amor
Pedro Luís Castro del Hierro e Lisetty Mendes Garrido são namorados. Ele tem 27 anos, ela 23, e deixaram Cuba há menos de um ano. A porta de saída foi aberta pela mãe de Lisetty, médica no Centro de Saúde de Albergaria dos Doze.
Ele trouxe já um curso de Engenharia Mecânica, que lhe valeu o emprego na indústria de moldes da Marinha Grande, ela frequentava o curso de Medicina Dentária e procura agora obter equivalências para o concluir e poder exercer a profissão, em Portugal. Estão ainda a habituar-se ao frio de Janeiro.
Mas tudo o que têm descoberto no País supera qualquer dificuldade. Preferem não falar muito das diferenças, e terminam a conversa de uma forma simples: “é muito bom estar aqui”. No curso? “Também…”
Ser português, assim, além da língua
O curso de português para falantes de outras línguas começou no ano lectivo de 2009/2010, no âmbito do Centro Qualifica do Agrupamento de Escolas de Pombal. A professora Cristina Costa sublinha que tem sido um grande desafio.
“O mais difícil é tentar responder às necessidades de cada um”, num grupo tão heterogéneo: os ucranianos, por exemplo, “querem verbos, querem aprender rapidamente, porque têm bom domínio da língua, acompanham muito facilmente, não só porque estão cá há mais tempo mas também porque a questão do alfabeto os ajuda. Os indianos estão há menos tempo e apresentam grandes dificuldades”.
O programa, com duração de 150 horas, é definido pela Agência Nacional para a Qualificação, com unidades/módulos de formação. Em cada um deles há resultados para atingir, desde a compreensão oral à escrita, num período definido entre Setembro e Maio