Como foi que a vocação e os Franciscanos lhe apareceram no caminho?
Fiz o liceu todo em Ciências, pois a minha ideia era seguir Medicina, mas, em 1974, quem queria ir para a universidade era obrigado a fazer um ano de trabalho, o Serviço Cívico, supostamente, dentro da área onde pretendia estudar. Fui para o Serviço de Nefrologia do Hospital de Santo António, no Porto e Hospital Maria Pia. Entretanto, concorri para sete Faculdades de Medicina, em França, e fui aceite em cinco. Escolhi Bordéus, que era a mais próxima e lá fui eu no Sud Express, com emigrantes, galinhas e coelhos a bordo. Em França, decidi ir para o Seminário, porque queria ser missionário. Sentia necessidade de estar em contacto com pessoas, penso que já haveria uma linha condutora. Quando me dei conta, estava inscrito no Seminário, no Porto. Depois saí, fui trabalhar e ainda fui para a tropa, para as Minas e Armadilhas, onde estive no Serviço de Saúde. Acabei por entrar para os Capuchinhos, através do teatro, porque, no Amial [Porto], de onde sou natural, havia um grupo de jovens e o frei Luís, que era meu colega de curso, convidou-me para ajudar, no coro e teatro. Já conhecia os Capuchinhos, da Senhora da Hora, mas foi aí que entrei em contacto com o provincial, o D. António Monteiro, que foi bispo de Viseu, e conversámos. No final da tropa, voltei para casa e fui trabalhar para um escritório que fazia exportação de tecidos. Foi um reencontro e não uma opção por algo desconhecido. Em 1986, entrei para o noviciado em Barcelos. Acabei Teologia, em Lisboa e, a seguir, fui para a Baixa da Banheira e Vale da Amoreira, um sítio fantástico. Costumo dizer que tenho quatro licenciaturas: de papel, são só duas – Teologia, pela Católica, e Ciências Bíblicas, pelo Instituto Bíblico de Roma -, mas as mais importantes não têm papel. Foram os três anos na Baixa da Banheira e Vale da Amoreira, e os oito na Comunidade Vida e Paz, em Fátima, onde fui capelão a partir de 1997. Naquela comunidade [ que acolhe pessoas sem-abrigo ou em situação de vulnerabilidade social, ajudando-as a recuperar a sua dignidade e a construir o seu projecto de vida], conheci o melhor e o pior do ser humano. Cada um de nós é capaz das coisas mais fantásticas e das coisas mais tenebrosas. Vi milagres, vi ressurreições a acontecer de gente que se sentia acolhida e amada.
Leia aqui a primeira parte da entrevista
Fica emocionado com as recordações.
Em oito anos, conheci centenas de jovens. Perdemos alguns. Apenas, porque sim… A taxa de sucesso é muito grande e, quem chegava, encontrava um colo e gente absolutamente disponível 24 horas por dia. Depois, fui colocado em Coimbra e foi lá que me começaram a chamar de Roma. Profissionalmente, sou intérprete. Faço tradução simultânea e é nisso que empenho boa parte do meu ano de trabalho. Sou intérprete para a Conferência Episcopal, para a Comissão Teológica, para a Ordem Franciscana Secular e no Vaticano. Trabalho com cinco línguas – Português, Espanhol, Inglês, Francês e Italiano. Passo mais tempo fora do País, do que cá. No ano passado, fiz 106 voos. Em 365 dias, um terço do ano foi passado em aeroportos. Gostava mais de ter a vida que imaginam que tenho do que a que tenho. Vou a três ou quatro continentes, todos os anos. Muito dos meus dois últimos livros foi escrito a bordo de aviões.
Sempre próximo do céu…
Sim! Por vezes, tenho voos muito longos e, para matar o tédio, escrevo. Este ano, estive na Indonésia, no Equador, nos Estados Unidos e em São Tomé. Aliás, a minha guerra, desde há oito anos, tem sido lá. Em 2010, em Janeiro, percebi que não iria ter nada para fazer em Fevereiro. Estava livre e fui para a internet procurar contactos dos bispos da Guiné e de São Tomé e o primeiro que me apareceu foi de São Tomé. Enviei-lhe um email a explicar quem era, dizendo que tinha milhas da TAP disponíveis e poderia ir sem custos e oferecendo os meus serviços. Meia hora depois, recebi uma resposta. Só uma frase: "anda já, amanhã". Tratei das burocracias e fui. Quando cheguei, o bispo estava à gargalhada, à minha espera. Ele sabia quem eu era, mas eu só percebi que aquele bispo, era o padre Manuel, com quem havia trabalhado durante três anos, quando estava na Diocese de Setúbal. Nunca mais nos havíamos cruzado e eu não sabia que ele havia sido feito bispo. Fomos para casa dele, jantámos e conversámos. Ele estava em pânico. A única estrutura de apoio a órfãos da ilha, o orfanato de São Tomé, da Caritas, estava a cair de podre e a maior preocupação dele eram aquelas 70 crianças, muitas delas órfãs de pais vivos. E havia ainda o problema de só terem leite para mais três semanas. Estive lá dez dias a trabalhar e, quando voltei a Portugal, tive várias aparições televisivas em quase todos os canais e o Expresso fez também um trabalho comigo. Aproveitei para lançar a mensagem do Banco de Leite e ela passou. No final de Fevereiro, já tínhamos leite em pó até Dezembro. A primeira resposta veio de pessoas ligadas à Mãe de Deus, a maior IPSS dos Açores, e a partir deles, veio o contacto com vários produtores de leite locais, que garantem há oito anos o fornecimento. Depois, começámos a guerra da construção de um novo orfanato, feito de acordo com todas as normas portuguesas e europeias. Foi um trabalho gigantesco que contou com a generosidade e coração de muita gente e o esforço do Governo de então e a teimosia pessoal do doutor Passos Coelho, que acompanhou o processo. Em Janeiro deste ano, conseguimos, finalmente, inaugurar o novo edifício.
Ainda está envolvido no projecto de economia social PEDIL?
O Projecto de Desenvolvimento Integrado de Lembá, sim. À frente estão a irmã Lúcia e o [LER_MAIS] senhor Cândido. As mais-valias são reinvestidas no projecto, temos 110 trabalhadores, que vivem condignamente, do seu próprio trabalho. O ordenado médio no arquipélago é de 70 euros e o preço do litro de gasolina é semelhante ao de Portugal. Quando lá cheguei, a estrutura já existiria há 12 anos. Neste momento, existe um dispensário, um infantário, uma escola com 1250 alunos da primeira à sexta classe, uma cozinha comunitária, uma residência para 30 idosos, 250 idosos em apoio domiciliário, uma carpintaria, uma alfaiataria, um centro de artesanato e outro de formação, com computadores, e, no último ano, construímos a primeira exploração de hortícolas, com o apoio da Cooperativa Agrícola dos Açores e da Cooperativa Terra Verde, que são especializados em cultivo em estufa. O sol e a chuva tornam difícil o cultivo de verduras verdes escuros, como as couves, indicados para combater a grande taxa de anemia da população local. Também reconstruimos o polidesportivo, graças à Fundação Benfica. Foi lá que Marcelo Rebelo de Sousa esteve a arbitrar um jogo na sua visita ao território. Também construímos um centro de acolhimento para adolescentes grávidas. Há muitas Organizações Não Governamentais (ONG) a trabalhar em São Tomé… e, infelizmente, há muitas também a lavar dinheiro porco… Os pobres dão dinheiro a muita gente e enfeitam que se farta. Conheço muitas entidades que estão no terreno que merecem todo o carinho e solidariedade, a par de outras que não merecem respeito algum, que não está lá para servir as pessoas, mas para se servir delas, em lavandarias de dinheiro porco. Não é só lá, acontece, no mundo inteiro.
E, no Príncipe?
Em todo o território a situação é difícil, mas, no Príncipe é dramática, com os mais jovens e mais velhos a correrem mais riscos, porque a tendência da faixa etária produtiva é ir procurar trabalho em São Tomé e deixá-los no Príncipe. Havia uma ONG portuguesa lá, com uma estrutura boa para acolhimento de crianças e iria lá criar um lar de terceira idade, mas devido a alguns problemas teve de abandonar o território e o apoio às crianças e idosos ficou nas mãos de duas heroínas portuguesas: a irmã Flosina Medeiros (80 anos) e a irmã Maria da Conceição (75 anos), das Servas da Sagrada Família. Elas são "a autoridade" da ilha e têm uma intervenção fabulosa, com o apoio do Governo Regional e da Caritas Diocesana de São Tomé. Há questões de alcoolismo e de desestruturação familiar e a nossa guerra tem a ver com a construção da Casa Betânia, um lar de idosos, orçado em 317 mil euros. Temos dez por cento garantidos pela Mota Engil e uma promessa da família Amorim. Marcelo Rebelo de Sousa prometeu ajudar nesse projecto. A ideia dele era pedir ajudar às empresas de construção civil portuguesas, mas elas saíram todas de lá, com a chegada dos chineses. Só a Mota Engil, antes de sair, em Julho, ainda fez arranjos importantes de telhado e paredes, com o material que ainda tinham.