No início, inevitavelmente, o afastamento é um fardo. De olhar tímido e voz trémula, Hércules é um daqueles casos que se transfigura sempre que pisa um campo de futebol. O médio ofensivo está “feliz” com esta oportunidade de ir “à procura de cumprir um sonho que bate desde os 6 anos de idade”, mas também se sente angustiado “pela distância e pela saudade”.
Em São Paulo ficou a família, que já não vê há dois meses. “Em casa tenho um filho de um aninho e a minha esposa acabou de passar por uma cirurgia. Graças a Deus, estamos todos superando. Falo com eles todos os dias.”
É o preço que o rapaz de 26 anos tem de pagar por ter aceitado o convite de Mauriti Cardoso, atravessar o Atlântico, jogar n'Os Nazarenos e perseguir um sonho. “Ele já me conhecia e quando assumiu a parceira com o clube apareceu a oportunidade. Estou gostando de tudo e adaptando-me o mais depressa possível.”
Hércules é um dos 13 futebolistas brasileiros, a maioria evangélicos, colocados pelo empresário no clube da Nazaré. O objectivo é que seja uma relação em que só existam vencedores. O clube ganha competitividade e os jogadores uma montra que lhes permita pular para escalões mais altos do futebol europeu. Nem tudo são rosas, ainda assim.
“Aqui podemos dormir de janela aberta, há segurança. Como a Nazaré é uma vila turística, vejo bastantes gringos de outros países. É tudo muito diferente”
Vavá
Na realidade, vão jogar na 1.ª Divisão distrital de Leiria, uma espécie de quinto escalão nacional, o último de todos. “Para muitos é a primeira vez que saem do Brasil e estão a adaptar-se a uma nova realidade”, explica Mauriti Cardoso. Para já, “estão a adorar”. “Pela vila, pela praia, pela estrutura e pelas condições, melhores do que aquelas a que estavam habituados.”
Por enquanto estão instalados no Centro de Alto Rendimento (CAR) de Surf. Após “algumas obras de reforma”, irão mudar-se para a Quinta do Pinheiro, em Valado dos Frades. Têm, ainda, um pequeno apoio financeiro.
“O objectivo é vencer. Dar-lhes a oportunidade de crescerem e de ter uma porta gigante de entrada na Europa. Todos têm o sonho de se tornarem jogadores de futebol profissional e n'Os Nazarenos estamos a trabalhar para que possam ter novos horizontes.”
Bênção de Deus
Em Janeiro, Vavá competiu na Copa São Paulo de juniores, considerada a principal oportunidade para se descobrir futuros craques do futebol brasileiro, observada atentamente por clubes e agentes. No entanto, quando terminou o evento, voltou para a cidade de Jacareí para ajudar a mãe e os três irmãos. “Comecei a trabalhar num lava-rápido e foi então que Deus me abençoou.”
A bênção foi o convite de Mauriti Cardoso para integrar o plantel d'Os Nazarenos. Quando chegou à Nazaré, Vavá parecia “uma criança”. “Nunca tinha saído do Brasil e estava na Europa. Aqui podemos dormir de janela aberta, há segurança. Como a Nazaré é uma vila turística, vejo bastantes gringos de outros países. É tudo muito diferente.”
“Em casa tenho um filho de um aninho e a minha esposa acabou de passar por uma cirurgia. Graças a Deus, estamos todos superando”
Hércules
“Foi uma porta que Deus abriu para mim”, prossegue o futebolista de 20 anos. “Acredito que Ele tem planos para a minha vida. Estou a trabalhar para que as coisas aconteçam. Desde pequeno que tenho o sonho de ser jogador, de cheg [LER_MAIS] ar à selecção brasileira e na Nazaré vejo uma porta aberta. Acho que vai acontecer uma coisa boa aqui.”
A confiança no trabalho e no talento fazem com que queira retribuir o mais depressa possível todos os esforços da família. “A minha mãe sempre batalhou para eu chegar a algum lugar. Creio que as coisas vão acontecer logo e eles vêm para cá também, assistir aos nossos jogos. Por agora, o importante é estar em campo, mostrar talento e ser feliz.”
Gestão emocional
A expectativa de Zé Negão, Elias, Yago, Vinicius, Max, Lucas, Kaique, Victor Borba, Geovane, Vítor, Hércules e Vavá, chegados de clubes como Amadense, Brasiliense, Marília, São Bernardo, Sinop, São Caetano, Penapolense e América, é elevada.
Mas neste mundo cruel, nesta roleta onde a sorte e o azar tem o seu peso, já se sabe que nem todos podem vencer. Ou melhor, muito poucos chegam lá. É aí que surge Anderson Dantas, futebolista de 39 anos que fará muito mais do que dar pontapés na bola.
Chegou a Portugal há 13 anos, jogou no Estrela da Amadora, na Oliveirense, na Naval, passou pela Suécia e na temporada passada jogou no Sourense. Para ele, o País não tem segredos e também sabe tudo, porque passou pelo mesmo, das expectativas com que os jovens atravessaram o Atlântico.
“O cariz da minha vinda tem muito que ver com o enquadramento destes rapazes. Vivo, casei e tive filhos em Portugal, um país que me acolheu muito bem e sinto a responsabilidade de que nada lhes falte. Não por serem brasileiros, mas por serem miúdos que vêm cheios de sonhos e expectativas. Serei essa ligação da experiência, de voz de comando. Sempre fui capitão e vou tentar evitar que façam coisas que não sejam interessantes para as carreiras deles.
A gestão das esperanças dos restantes rapazes será, mesmo, o ponto fulcral para o sucesso do projecto. “Se falar com a maioria percebe que têm sempre o sonho de vir para a Europa, mesmo que seja para este nível. Temos de lhes dizer que o Real Madrid, o Barcelona e o Bayern de Munique são um sonho que não vai acontecer.”
Têm de entender, no entanto, que tudo o que fizerem enquanto estiverem em Portugal “deve ser bem feito”. “Que sonhem, mas não sonhem alto.”
Mundo diferente
A competição ainda não começou, mas a rapaziada já sabe que o sucesso não vai bater à porta de todos. “Tenho colegas que vieram ter comigo e perguntaram como podem tirar a licenciatura em Educação Física ou em Fisioterapia. Ou então onde conseguem um trabalho”, avança, satisfeito, Anderson Dantas.
“Procuro informar-me e informá-los, porque quero que se sintam bem por cá. No Brasil ainda há a ilusão de que se pode viver apenas do futebol e quando chegamos a Portugal percebemos que isso é para muito poucos.”
Quando o projecto foi lançado, a subida de divisão foi tida como meta. É o objectivo, sim, mas Anderson Dantas não tem dúvidas de que a adaptação ao futebol europeu ainda está no início. “Quando cheguei levava muito na cabeça pela minha inconsciência táctica. Eles ainda vão sentir esse choque de adaptação à táctica e à intensidade portuguesas. Custa, mas é um processo que acrescenta em muito a bagagem deles.”
Por enquanto, os sonhos ainda não foram traídos. Tudo é bonito. Hércules acredita. Quer ser feliz. E para que isso aconteça reza todos os dias. “A minha mãe sempre me ensinou a ter fé e isso ajuda, faz toda a diferença. Acredito que tudo vai valer a pena.”