O senhor Martins partiu há algum tempo.
Marcou várias gerações através da Livraria Martins em Leiria: lembro-me das muitas centenas de vezes que visitei a minúscula loja quando ele me contava como me conhecia desde muito criança colocando a mão por sobre a minha cabeça para averiguar do tamanho que não podia ver.
Entretanto cresci. Continuou cego como desde que me lembro, e reconhecer a nossa voz era um sorriso aberto numa figura alta e sempre, sempre, muito direita.
A minha mãe contava-me como os livros do reviralho por ali passavam, em manobras que os subtraíam ao olhar pidesco da polícia política e eu tentava imaginar as buscas, em vão…
Nesse tempo as livrarias tinham atrás do balcão gente que conhecia os livros, que sabia o valor de um autor, de uma editora, de um volume, da coisa vagarosa que é ler, do exercício de paciência que era abrir folhas não separadas com uma faquinha de madeira, da minúcia de arrumar volumes na prateleira pela ordem certa. Do prazer e da viagem que era – e sempre será – ler.
As capas eram enfadonhas, os autores não vinham às tertúlias de apresentações e quem comprava livros esperava semanas que chegassem finalmente às prateleiras do senhor Martins.
Tudo mudou entretanto. Entre tanto…
Ainda bem que temos memória.
Leiria e muitas pessoas devem ao senhor Martins as horas de leitura aconselhada – este novo título, aquele clássico, uma nova editora – e quem seríamos todos nós, sem o património filtrado de outras vidas que viveram o que não vivemos e viveram para o contar?
O senhor Martins foi todo o outro tempo que não volta. Nunca mais.
Entretanto a Livraria Martins, ela própria que lhe sobreviveu, sucumbiu depois aos tempos modernos.
Nas grandes superfícies ninguém nos conhece, ninguém [LER_MAIS] nos mostra mais um livro da Assírio ou da Cotovia mal entramos, ninguém recomenda uma tradução ou um autor desconhecido.
A guerra agora é outra: cada centímetro quadrado de linear em exposição tem um valor que as editoras disputam.
As livrarias tornaram-se meras montras de editoras, com gente anónima atrás do balcão – gente que procura no ecrã do computador o título que soletramos, como procuraria uma referência de uma torneira ou um o-ring ou um pneu.
Os livros tornaram-se meras mercadorias sem alma em que a capa vende, o bruá mediático vende, e a capacidade de nos transportar para outros mundos é de somenos importância.
Às vezes olho para os jovens atrás dos balcões de gigantescas livrarias e pergunto-me se saberão que existiram senhores Martins no nosso Portugal, que arriscavam liberdades para ter livros proibidos na segunda fila das prateleiras.
Depois suspiro e penso que estou a envelhecer, ou que o mundo enlouqueceu de vez. Não sei, mas gosto de pensar que uma pequena estrela brilha no grande céu do tempo e o senhor Martins se ri disto tudo.
E quando passo na rua estreitinha e escura que liga a Praça Rodrigues Lobo ao Gato Preto, marco na memórias das minhas filhas um itinerário que foi tão meu e digo-lhes: – Aqui era a Livraria do senhor Martins…
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