No recente fórum da CIMRL organizado pelo JORNAL DE LEIRIA sobre ordenamento do território, afirmou que o desordenamento é “um cancro da sociedade”. Em Portugal, ainda tem cura?
Se actuarmos a tempo, sim. Agora, se o que está a acontecer com a dita floresta lenhosa (pinhal e eucaliptal) e com o abandono da agricultura – sobretudo a Norte do Tejo – associado ao flagelo dos incêndios, continuar, chegaremos a um ponto sem retorno. Além de se perder terra, perde-se fertilidade dos solos. Isso é irrecuperável. Para se ter uma ideia, são necessários sete mil anos para repor o solo perdido com as asneiras da campanha do trigo de Salazar. O que se está a passar com a floresta de uso múltiplo no Sul é completamente diferente. Não arde.
Por que é que não arde a floresta a Sul?
Porque é gerida. As propriedades são grandes. No Norte, ao fazer-se o liberalismo, não se teve em conta a dimensão mínima necessária e o emparcelamento. A propriedade está de tal forma dividida, que se torna inviável rentabilizá-la e fazer uma gestão correcta e ordenada. No Sul, o liberalismo não teve as mesmas consequências nem houve o problema do abandono do morgadio. Aqui, o problema é diferente. As alteração climáticas afectam primeiro as terras secas. O que se está a passar no Sul é como se fosse um fogo que arde sem se ver. No Norte arde, morrem pessoas e o Governo é politicamente obrigado a tomar opções. No Sul, ainda não morrem pessoas. Mas morrem sobreiros e azinheiras. E o montando é uma defesa contra o avanço do deserto. Se não mantivermos os montados a Sul, o deserto do Sahara chegará ao Tejo.
Qual a probabilidade disso acontecer?
[LER_MAIS] É muito provável. Há dois aspectos muito graves: a diminuição e mudança do regimento da chuva e o aumento das temperaturas. No âmbito de um projecto da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), estudámos o regimento de chuvas em Castro Verde. Registou-se uma redução de 10% de chuva. É muito, mas o maior problema não é esse. O pior é que entre Janeiro e Abril perdemos mais de 20% da chuva anual. A Primavera deixa de funcionar como tal e não há infiltração de água. Ora, os sobreiros e as azinheiras adaptaram-se àquela zona porque têm raízes que lhes permitem ir buscar água a 15 metros de profundidade. O montado está a morrer e ninguém faz nada. Na minha prova para investigador-coordenador previ que isso ia acontecer e que era preciso estudar o fenómeno.
Isso foi há quantos anos?
Foi em 1986. Fiz dez projectos para aprofundar o assunto, mas nunca tive dinheiro para os concretizar. O único caso de sucesso foi a aplicação desses princípios de gestão adequada do montado em 15 hectares que a LPN semeou na zona mais seca do Alentejo, junto a Mertóla, sem que tivesse morrido qualquer árvore. É preciso saber porquê e melhorar o processo. Mas não há dinheiro. Vai todo para a floresta de produção, que também é precisa, mas não como está a ser explorada. O pinhal deixou de ser economicamente viável. O eucaliptal, feito como está a ser feito fora das celulose, também não é rentável e, por isso, não é gerido. A média nacional de produção do eucalipto é de seis metros cúbicos (m3) de madeira por hectare. As celuloses produzem mais de 15 m3; os outros menos de quatro. Antes fosse tudo das celuloses. Bastava que elas aumentasse a sua propriedade para o dobro, dos actuais 155 mil hectares para 250 ou 300 mil hectares, e teríamos papel para dar e vender.
Apesar de fazer parte da nossa floresta autóctone, estamos a importar carvalho.
É verdade. Somos o país europeu com maior produção de mobiliário, na ordem dos quatro a cinco mil milhões de euros por ano. Destes, 700 milhões são para importar carvalho. Era preciso plantar mais. Os franceses e os alemães já perceberam isso e estão a comprar terras cá para produzir carvalho. Por que é que nós não fazemos isso? Quem o está a fazer são as celuloses porque o eucalipto para ser certificado tem de ter 10% de floresta autóctone, nomeadamente, carvalho. As celuloses têm cerca de 210 mil hectares de terreno, dos quais só 155 mil são eucaliptos. O resto é carvalho, também para reduzir o risco de incêndio. As matas das celuloses não ardem, porque têm ordenamento. As ZIF [Zonas de Intervenção Florestal] foram criadas para tentar ordenar a floresta, mas não funcionam.
Por que é que, de modo geral, as ZIF não funcionam?
É uma questão educativa. É vital que eduquemos as pessoas para que sejam capazes de cooperar. O ordenamento é uma questão ética e educativa. O grande drama, já dizia Stuart Mill [filósofo inglês do século XIX], é que, quando uma decisão administrativa dá mais ou menos valias e essas são privadas, é impossível fazer um ordenamento correcto. Imagine que tem um terreno, desses partidos aos bocados. Valerá 10 cêntimos o metro quadrado. Mas se aprovar um hotel de 500 quartos para lá, passará a valer 30 euros, ou seja, 300 vezes mais. Com lucros destes é impossível fazer um ordenamento urbano. Os bens ambientais têm de ser pagos. É possível salvar este País, desde que as pessoas metam na cabeça que é preciso mudar as mentalidades. Quem produz água, quem produz biodiversidade e quem diminui o efeito de estufa, tem que receber dinheiro correspondente à mais-valia criada para o colectivo.
Diz que ainda estamos a tempo de "salvar o País". Temos os decisores políticos sensibilizados para isso?
Não. Estou num movimento cívico para salvar o montado, que junta vários municípios do Alentejo, produtores florestais, a LPN, a Quercus, professores universitários e investigadores preocupados com o que se está a passar com o montado. Recentemente, escrevemos ao primeiro- ministro a alertar para o facto de o montado estar a morrer e não se fazer nada. Os dinheiros comunitários estão a ir todos para o Norte e não há pagamentos de serviços ambientais. Ignora-se que a manutenção do montado, com boa pastagem, aumento da matéria orgânica e evitando a morte do sobreiro, diminui a emissão de carbono, aumenta a taxa de infiltração de água e a biodiversidade e, consequentemente, o turismo. Se o Alentejo deixar de ter montado, deixa de ser apetecível em termos turísticos.
A última carta de uso e ocupação do solo, divulgada recentemente, revela que, em 2015, Portugal tinha menos mato, menos pastagens e menos pinheiro bravo. Em contrapartida, havia mais eucalipto e mais área agrícola. Há algum dado que considere mais surpreendente?
O dado relativo à área agrícola, que é outro problema, porque o que está a aumentar é produção hiper-intensiva, como o olival e as estufas. Se temos menos água, onde se vai buscar para acompanhar esse crescimento? Com que água é que estão a regar? No Alentejo está proibido o uso de águas subterrâneas para consumo humano porque estão todas com mais de 50 miligramas de nitratos por litro. Algumas ultrapassam já os 100 miligramas. Beja e as cidades e vilas à volta estão a beber do Alqueva. A água do Alqueva ainda é bebível, mas as subterrâneas não. O problema é que muitos montes não têm água da rede pública. Continuam a viver da água subterrânea, com muito nitrato. Estará aqui a causa do aumento de casos de cancro do estômago no Alentejo. Quando se fala em regadio, tem de se saber de onde vem a água. O que se devia fazer no Alentejo – porque dá maior rendimento e mais resiliência às mudanças de clima e às variações de mercado – seria uma exploração com montado, que tenha entre 400 a dois mil hectares, com cerca de 10% de regadio feito com pequenas charcas ou água inflitrada na zona e com, pelo menos, três tipos de gado (porcos, ovelhas e vacas). Assim, também se ocuparia a mão-de- -obra o ano inteiro. Isto não acontece com a agricultura intensiva, que está concentrada em dois ou três meses por ano, o que cria problemas sociais gravíssimos. A agricultura hiper- intensiva que se está a praticar não é sustentável social, económica e ambientalmente.
A ocupação dos solos mais produtivos por edificações e outros usos que não a agricultura pode vir a comprometer o abastecimento alimentar?
Com certeza. O saldo da balança agrária em Portugal é negativo em quatro a cinco mil milhões. Quanto mais for necessário por força, por exemplo, do aumento do número de turistas, e quanto maior crescimento económico, maior será o défice. Se houver uma crise mundial, morremos de fome. É inaceitável. Em Inglaterra, durante a guerra, até o jardim de Westminster estava agricultado. Londres tem 50 metros quadrados por habitante de estrutura verde primária, nós temos dois. No Interior, ou queimamos e vem parar tudo aos vales, ou está abandonado ou debaixo de estradas ou de fábricas. No Litoral, os melhores solos estão todos ocupados.
Há um ano, o País estava ainda na ressaca do grande incêndio de Pedrógão Grande. Neste ano, muito se falou de floresta e de ordenamento florestal. Como avalia o trabalho que sido feito pós-Pedrógão Grande?
Não se resolveu problema nenhum. A pergunta que continuo a fazer é: por que é que em Portugal há dez vezes mais ignições per capita do que noutros países? Procure-se a explicação. Façam-se estudos. Nas zonas onde há barragens há quatro vezes mais ignições. Estas foram feitas ocupando solos de melhor qualidade, que eram regados. Como a agricultura deixou de ser economicamente viável nessas zonas, os jovens foram-se embora. Ficaram os velhos. Quando têm os seus hortos cheios de silvas e de ervas, fazem uma queimada porque não têm força para as cortar nem rendimentos para pagar a quem o faça. Outro dado: em Portugal gasta-se três vezes mais, por hectare, no combate aos fogos. Por que é isto acontece se temos bombeiros tão bons ou melhores do que os outros? É verdade que a coordenação é má, mas não é só isso que justifica que, gastando-se três vezes mais, arda tanto. Isso acontece porque não há ordenamento. Não se conseguem apagar fogos numa zona desordenada. É arriscadíssimo. É tudo uma questão de ordenamento e de ter coragem política para tomar medidas.
Que medidas de fundo ficaram por tomar?
Quem não cumpre a Lei, deve ser expropriado. Já me chamaram comunista por defender isto. O rei D. Fernando também era comunista, quando impôs a Lei das Sesmarias? Se não está ordenado e se os proprietários não se juntam usando as ZIF para ganhar dimensão e ordenar, não podemos ficar de braços cruzados. Aquele que tinha o terreno limpo e este ardeu porque os vizinhos não limparam deve receber uma indemnização pelos prejuízos do momento e de futuro. Se não tiverem dinheiro para pagar, entregam o terreno. E assim a propriedade vai ganhando dimensão para ser economicamente viável. Há outro dado que não podemos ignorar: em Portugal, o Estado tem apenas 3% da floresta, nos EUA tem 25%.
E nem esses 3% o Estado cuida como devia.
Pois não, porque estamos a destruir o Estado em Portugal. O que estão a fazer ao Estado não tem nome. A LPN conseguiu desenvolver um projecto no Alentejo porque comprou mil hectares de terreno com dinheiro da Comissão Europeia e com o apoio de uma empresa. É preciso que o Estado faça o mesmo. Para isso tem de ter propriedade e técnicos capazes. Veja-se o caso do Pinhal de Leiria. Tinha ardido em 1832, durante as guerras liberais, porque os guardas e os técnicos foram chamados para o combate e deixaram de estar lá. Agora, ardeu 86%, porque tiram de lá os técnicos. Não para irem para a guerra, mas porque o Estado simplesmente abandonou o Pinhal. Ignições suspeitas e os potezinhos incendiários… Isso existirá todos os anos, porque sempre houve e haverá malucos e interesses económicos paralelos. Mas se o terreno estiver ordenado e bem gerido, não arde tanto. O incêndio é muito mais controlável. Começa tudo por educação e, com essa educação, fazer o ordenamento. Combater o cancro na altura própria.
É muito critico em relação à forma com a legislação sobre a limpeza dos terrenos está a ser aplicada. Por quê?
Não consigo ver virtualidades na Lei, porque as pessoas não foram ensinadas e estão a cortar árvores que nunca deviam ser cortadas. Na ria Formosa, por exemplo, destruíram a vegetação natural. Quem está a fazer isso não ‘pesca bóia’ do assunto. Há uns anos, ardeu grande parte da serra do Algarve. Fiz um estudo para perceber a vegetação que estava antes e depois e o que aconteceu aos sobreiros nas várias encostas. Descobrimos que, por cada sobreiro morto a Norte, morreram dez a Sul. A sul o solo é delgado e só tem esteva. Está pobre, sem matéria orgânica. A norte, há medronho, folhado e zambujeiro, juntamente com o sobreiro. Estes arbustos não morrem. Cortar este tipo de vegetação é burrice. E é isso que está a ser feito.
Ambientalista professor e autarca
Engenheiro agrónomo, pelo Instituto Superior de Agronomia (1961), esteve ligado às Universidades Lusófona, Vasco da Gama, Nova de Lisboa, do Algarve, entre outras, como professor e investigador, contando com mais de 400 títulos publicados, quer em publicações de índole científica quer de divulgação e de formação.
Diz que a docência o realizou, mas confessa que é na investigação que se sente “verdadeiramente completo”, embora admita “a frustração por não conseguir ser avaliado pelos resultados práticos obtidos”, em vez de o ser pelo “trabalho publicado”.
Por duas vezes ocupou a presidência da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), entre 1996-1999 e entre 2005-2009. Deu impulso a projectos-piloto emblemáticos da LPN, como o de compatibilização da agricultura com a protecção de aves em Castro Verde, apontado como um caso de sucesso.
Actualmente, continua a integrar Direcção daquela associação ambientalista e é membro do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e do Conselho Nacional de Combate à Desertificação. Integra também a Sociedade Portuguesa da Ciência do Solo e a Sociedade Portuguesa de Pastagens e Forragens, entre outras entidades ligadas à protecção do ambiente. “Estou em coisas de mais”, brinca, do alto dos seus 81 anos.
Do seu percurso, fazem também parte duas passagens pela política, tendo sido presidente da Assembleia Municipal de Cascais, entre 1976 e 1979, e vereador no mesmo concelho, entre 1989 e 1993. Em 2013, foi agraciado, com o prémio Ambientalista do Ano, atribuído pela Quercus.