Apostado em procurar o que ninguém havia ainda retratado, olhou, voltou a olhar, percorreu corredores e salas até que, por fim, conheceu as “gentes” que habitam o monumento: os antigos, que vivem na memória, nas pedras e nas sombras, e os modernos que vivem na luz.
“Cada um tem as batalhas que escolhe. A minha Batalha é aquela onde vive tanta gente, nobre ou plebeia, nas sombras e nas colunas, nas gárgulas e nos túmulos. É aquela Batalha cujos antigos vivem na memória, nas pedras e nas sombras, enquanto os modernos vivem na luz ou caminham a nosso lado”, diz António Barreto sobre a exposição de fotografia Gente da Batalha.
A mostra da sua autoria e com curadoria de Ângela Camila Castelo-Branco tem inauguração marcada para este sábado, dia 23, às 16 horas, na Capela do Fundador, do Mosteiro de Santa Maria Vitória, na Batalha. A exposição, que acontece no âmbito do Ano Europeu do Património Cultural, estará patente durante um ano, sob o patrocínio do Presidente da República.
A preto e branco, nas suas idas à vila e ao mosteiro o autor captou instantâneos de “pessoas” que vivem nas pedras vivas sobre as quais se ergue o o antigo monumento nacional. Mas também há momentos de descontracção, de admiração da obra, de recolhimento, de oração e de meditação sob o olhar das gárgulas e das estátuas das figuras grandes da História de Portugal.
“Descobri na Batalha gente de todas as condições. Famílias, antepassados e descendentes. Vivos e mortos. Santos e fantasmas. Mártires e apóstolos. Residentes e visitantes”, conta e admite: “descobri algumas razões pelas quais a gente da Batalha vive ou está ali. O amor e a igualdade. A festa e a oração. O pecado e a virtude. A delícia e o medo."
Em busca de uma história para fotografar
António Barreto admite que, durante muitos anos, teve “uma relação distante com a Batalha”. Na juventude havia visitado o mosteiro apenas duas ou três vezes e, quando chegou do exílio na Suíça, em 1974, após a queda do Estado Novo, aquela grande construção saía-lhe ao caminho, quando se deslocava entre Lisboa e Porto.
Convidado pelo director do mosteiro, Joaquim Ruivo, para ser orador numa conferência sobre identidade nacional fez, por fim, uma visita mais demorada, com a máquina fotográfica na mão. Para sua surpresa, o responsável pela gestão do monumento convidouo a criar uma exposição de fotografia sobre o local.
“Sou fotógrafo por vocação e não por profissão, mas aceitei.” Visitou várias vezes o espaço em busca de um novo ângulo para explorar. Sentia que era alguém que vinha de fora e não queria repetir o que já outros haviam feito.
“Na internet, encontram-se fotografias do exterior, do interior, ao sol, à chuva, das Capelas Imperfeitas, da nave central… de quase tudo. Mas nós queríamos as coisas que, na Batalha, têm alma própria”, recorda Ângela Camila Castelo-Branco, que acompanhou o sociólogo nessas visitas.
Rapidamente, perceberam que o olhar dos visitantes era feito refém pelo apelo majestoso do gótico, olhando para cima e esquecendo de ver os detalhes. E o Mosteiro da Batalha é feito de pormenores.
“Há gárgulas que expõem receios sexuais, o que é curioso, dada a época em que o monumento foi construído. É uma dicotomia entre o sagrado e o profano, como se os canteiros tivessem mão livre para criar certos elementos escultóricos”, diz a curadora.
De lente em riste, Barreto testemunhou as romarias de antigos combatentes e suas famílias, os casamentos e o despejar de autocarros cheios de turistas, mas nada o entusiasmava ou mostrava ser digno de figurar numa exposição sobre um monumento que celebra a afirmação da criação de Portugal, enquanto Estado autónomo e de identidade definida.
“Pessoas” que povoam a Batalha
“Finalmente, reparei que havia esculturas e carantonhas com oito a dez centímetros de altura por todo o lado. Atrás das gárgulas, das colunas e nas alturas. Com a Ângela Camila, procurei referências a elas nos estudos, nos livros e nas teses académicas”, recorda.
Nada encontraram, mas foi ali que Barreto iniciou o trabalho que haveria de levar à criação da mostra fotográfica Gente da Batalha.
Afinal, qual o interesse dessas figuras de tamanho diminuto? O autor da exposição acredita que [LER_MAIS] se trata de elementos arquitectónicos criados a partir dos séculos XVI e XVII, onde são representados os povos que, com o processo de expansão marítima, entraram em contacto com os navegadores nacionais.
Negros, asiáticos de olhos rasgados e índios das Américas convivem, no mesmo plano e sem estratificação social, com príncipes e princesas. “A Batalha é ‘povoada’ por estas ‘pessoas’, por estas esculturas e carantonhas em pedra. Por vezes, tive de usar teleobjectiva para as fotografar, mas muitas estão, há séculos, à vista de todos os que visitam o mosteiro”, afirma.
“A única coisa que sobra após a morte é o amor. A pedra transmite emoções” Durante o tempo que passou a retratar Gente da Batalha, o sociólogo deixou de ter uma relação distante com o local e apercebeu-se que, embora o mosteiro tenha sido construído para celebrar a vitória de 14 de Agosto de 1385, sobre os castelhanos, na Batalha de Aljubarrota, não há sinal de guerreiros ou representações belicosas.
“A não ser a estátua de D. Nun’Alvares, erguida na praça ao lado, em 1968, ou os túmulos dos soldados desconhecidos, colocados nos anos 20 do século passado. Não. A Batalha é um monumento à independência nacional consolidada, à paz, ao cosmopolitismo, com as suas pequenas figuras, e a uma nova dinastia, a de Avis.”
Houve mais coisas que o deixaram surpreendido com o templo. Por exemplo, as estátuas nos túmulos de D. João e D. Filipa, e de D. Duarte e D. Leonor, que repousam em túmulos duplos de mãos dadas. “Estão de mãos direitas dadas. Não é a esquerda com a direita, como é mais comum, repare-se. É um gesto comovente que fotografei de vários ângulos, em cima de escadotes e em andaimes”, explica.
O autor cita o poema O Túmulo de Arundel, do poeta inglês Philip Larkin, que descreve uma rara imagem semelhante. “A única coisa que sobra após a morte é o amor. A pedra transmite emoções.”
Na exposição que inaugurará sábado, as gárgulas da Batalha foram rodadas para uma posição vertical, erecta e humana, afastada da sua natureza arquitectónica e hidráulica. “São seres, habitantes da Batalha e do mosteiro”, resume Ângela Camila Castelo-Branco, concluindo que, embora se sentissem “de fora” quando ambos chegaram, quando terminaram de retratar Gente da Batalha eram já “de dentro”.
Durante a inauguração da mostra, serão ainda apresentadas duas publicações: o catálogo da exposição Gente da Batalha, com texto introdutório do historiador Vítor Serrão, e o Making of – Gente da Batalha, da autoria da curadora Ângela Camila Castelo-Branco.