A reportagem da Ana Leal emitida pela TVI aponta para premeditação e fogo posto no Pinhal de Leiria. Ficará surpreendida se a culpa morrer solteira, se não existirem condenações em tribunal?
Cabe à Polícia Judiciária fazer o papel que não nos cabe a nós jornalistas e tenho esperança que a Polícia Judiciária agora faça o seu papel. E a minha experiência, das minhas investigações, dá-me essa esperança. Ainda agora, três anos depois, foi tudo acusado nos colégios privados do GPS, uma investigação feita por mim. Portanto, as pessoas têm que ter noção que uma investigação jornalística nada tem a ver com uma investigação criminal. E os timings muito menos. Se calhar vai ser uma investigação demorada, mas acredito e espero que tenha consequências.
Os dados que estão disponíveis permitem a identificação dos presumíveis culpados pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público?
As empresas e as pessoas estão perfeitamente identificadas. Com certeza. Quem esteve na reunião.
O que encontraram no Pinhal de Leiria encaixa no contexto da indústria da floresta e dos incêndios?
Todos nós andávamos há anos, uma vida inteira, se calhar, a ouvir falar destas histórias e nunca tínhamos chegado a isto. Fiz uma investigação concreta que tem a ver com o Pinhal de Leiria, não posso, nem quero, nem devo, generalizar para o resto do País.
Como é que classifica o que aconteceu no Pinhal de Leiria?
Associação criminosa. Entre outros muitos crimes que poderá configurar. Há uma conspiração, há uma associação criminosa e tudo o que advém daí, porque há outros crimes, que competirá ao Ministério Público saber quais. Falando agora apenas na base da minha convicção – uma coisa é aquilo que apresentei factualmente outra coisa é a minha convicção – há uma série de factores, que reunidos, culminaram nesta tragédia. Não faço ideia se eles queriam que ardesse tudo, o que sei é que houve uma série de factores, nomeadamente o tufão Ofélia e o facto de a mata estar negligenciada pelo Estado, o que tornou aquilo num barril de pólvora.
Portugal está capturado pela indústria do fogo?
Está, desde sempre, e eu mostrei também numa reportagem que se chamou O cartel do fogo precisamente isso mesmo. Isto atravessa vários governos, e nomeadamente o governo do Partido Socialista, que só fez asneiradas, e que foi conivente com tudo, e continua a ser, porque os Kamov aí continuam, não vejo penalizações, nada, vejo-os em terra, e nós pagámos uma fortuna por eles.
O País está à mercê de interesses?
Com certeza. Fizeram contratos assumidamente prejudiciais para o próprio Estado, que prejudicaram o próprio Estado, uma sucessão deles, com empresas suspeitas. Inclusivamente, há uma investigação em Espanha que está a decorrer que envolve algumas dessas empresas em Portugal, e mesmo assim, governos após governos, continuaram a dar a essas empresas suspeitas contratos de adjudicação de meios aéreos.
É frequente receber ameaças durante a investigação ou depois de as reportagens irem para o ar?
É. Antes, durante e depois. Não gosto muito de falar do assunto, porque se calhar, se pensasse muito não fazia nada. Acho é que tenho a felicidade de viver num País que é maravilhoso a todos os níveis, incluindo esse. Porque se fosse no Brasil provavelmente já estaria morta. O que sei é que enquanto for jornalista nada me irá deter.
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São maiores as pressões políticas ou dos poderes económicos?
Fico mais preocupada com a ligeireza com que alguns políticos telefonam a pedir para eu ser despedida do que pensar que me podem partir as pernas um dia destes. O descaramento é maior a esse nível e se calhar é mais difícil lidarmos com isso, porque vai depender, acima de tudo, da direcção de informação que estiver em funções. E outra coisa que se tornou moda, e que é outra forma de pressão, não para mim, porque tenho as reportagens blindadas, do ponto de vista de tribunais, em 30 anos nunca perdi nenhum processo, mas tornou-se moda, e pode melindrar direcções de informação, e são as chamadas acções cíveis. Estamos a falar de milhões, estamos a falar de uma forma de intimidar uma direcção de informação.
Há pelo menos um momento em que a Ana Leal se disse alvo de censura, há uns anos.
Estive em casa dois meses. É público. Para mim é um assunto encerrado, morto e enterrado, mas estive em casa dois meses. E por um assunto que toda a gente sabe, que é público, que se chama Siresp, que é um problema neste País. Aliás, vai continuar a ser. Não funciona, nunca funcionou, foi uma má opção política e continuamos a pagar para o Siresp.
Consegue sempre evitar a auto-censura?
Tenho o privilégio, neste momento, de ter um director de informação, que se chama Sérgio Figueiredo, que me permite investigar tudo aquilo que eu proponho. Nos tempos que correm é mesmo um privilégio, basta pensarmos quem é que hoje em dia faz investigação. São cada vez menos os jornalistas e cada vez menos os órgãos de comunicação social. Independentemente dos poderes, temos investigado aquilo que tem de ser investigado.
Há demasiados poderes ocultos em Portugal? Os casos que envolvem figuras do Estado e do sector privado indiciam que muitas decisões acontecem nos bastidores, à margem das regras?
Com certeza e é isso que eu tenho andado a denunciar ao longo da minha vida.
Sentem que o vosso trabalho incomoda?
Por isso mesmo é que eu tento deixar o confronto para a última semana, para as pressões, por exemplo, não começarem cedo demais.
E é mais fácil controlar uma comunicação social com redacções esvaziadas e empresas financeiramente desequilibradas.
As direcções de informação têm medo e pesam muito as chamadas acções cíveis, as pessoas têm medo de perder processos de milhões.
Mas a crise do jornalismo também é a crise da democracia.
Também. Mas acima de tudo porque os poderes instalados conseguem de facto ter influência junto das direcções dos jornais, televisões e rádios. Basta pensarmos quem é que hoje em dia faz investigação, são cada vez menos os jornalistas e cada vez menos os órgãos de comunicação social, portanto há uma decisão nesse sentido. O jornalismo de investigação atravessa uma grave crise, com excepção da TVI.
Nunca foi condenada, mas arguida são vários os processos.
É o meu estado normal, é o meu estado civil. Costumo dizer que não é casada, é arguida. Ganhei os processos todos.
Concorda quando dizem que faz jornalismo de causas?
Sim. Eu acredito naquilo que faço. E acho importante acreditar. Sou eu que escolho os meus temas, nessa perspectiva também. Os jornalistas têm obrigação de denunciar aquilo que está mal, independentemente dos poderes instalados, independentemente do poder que vamos afrontar.
Não é apenas uma profissão.
Exactamente, é uma obrigação, é uma missão. O jornalista deve encarar a profissão dessa forma.
Implica escolher um lado?
Não é escolher um lado. Acho de uma hipocrisia incrível as pessoas dizerem que não estão de um lado, em determinados temas. Por exemplo, a Casa Pia. Obviamente no momento em que estou a escrever, não tenho um lado; mas é hipócrita dizer que eu como pessoa não tenho um lado, porque tenho. Isso acho uma hipocrisia, qualquer jornalista dizer que não tem, porque todos nós temos. As minhas reportagens apresentam factos, mesmo acreditando, ou estando, de um lado.
Adoptou duas menores, irmãs, depois de uma reportagem sobre crianças vítimas de maus tratos. Costuma criar laços afectivos durante as reportagens?
Eu era uma miúda e tem a ver com as ligações que se criam na sequência de uma reportagem. Não acredito nos jornalistas que dizem que não podem ligar-se, como se isso contaminasse a objectividade de toda a reportagem. Não acho isso possível. Hoje em dia tenho uma ligação, até de amizade, com muita gente que passou pelas minhas reportagens. Por exemplo, eu sou amiga, obviamente, para o resto da minha vida, da mãe do Rui Pedro, da Filomena Teixeira.
Há alguma reportagem onde gostasse de voltar?
O Meco. No sentido de acreditar que há alguém que ainda não apareceu e que pode ter testemunhado aquela noite. Ainda tenho esperança nisso.
E a reportagem que mais a marcou?
O Rui Pedro faz parte da minha vida, foram anos e anos à procura daquele miúdo. Percorri, não direi o mundo, mas muitos países, com a própria mãe do Rui Pedro. Será sempre uma das reportagens da minha vida. Está cá, marca.
Se não fosse jornalista estava a dar uso à licenciatura em História?
Não, estaria provavelmente num país do terceiro mundo em ajuda humanitária, uma coisa assim. Não me revejo em mais nada, confesso. Agora seria feliz, mas também tem a ver com esta fase da minha vida, no campo, a cuidar de uma casa que tenho, de família.
Casa Pia, Freeport, Rui Pedro, Meco, Raríssimas, GPS, Pinhal de Leiria, a assinatura de Ana Leal está nas investigações mais mediáticas dos últimos anos, nos casos que mais prenderam a atenção do País. Tem 49 anos de idade e está há quase duas décadas na estação de televisão TVI, antes passou pela RTP, Comercial e Antena 1. Foi precisamente na rádio que se tornou a primeira jornalista portuguesa a chegar a Sarajevo, durante a guerra. Tinha 22 anos de idade e esteve vários dias dada como desaparecida, ninguém em Portugal conseguia contacto com ela. Pelo meio de bombardeamentos e snipers, alcançou a capital bósnia e entrou em directo com a ajuda de um telefone satélite emprestado por uma estação de televisão norte-americana. Licenciada em História, diz que o jornalismo é uma missão que lhe está no sangue e também colabora na formação de novos jornalistas, enquanto professora convidada da Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa. Fora do jornalismo via-se a trabalhar numa missão humanitária.