É uma manhã de Verão fora de época, como tantas nos últimos dias. No centro de triagem de donativos para as vítimas do incêndio, há um fogão a gás onde se lê "Reservado Dany". Nesse mesmo instante, na casa de Daniel Batista, que a 15 de Outubro as línguas de fogo lamberam até se tornar inabitável, ele e os amigos, com os amigos dos amigos, alguns escuteiros e outros tantos voluntários, vindos de vários pontos do País, trabalham contra o relógio para recuperar o lar que existiu entre aquelas paredes, em Eirinhas, Vieira de Leiria. Lavagens e limpezas, demolições e reconstruções, um autêntico estaleiro, em que a obra nasce da solidariedade.
Enquanto a burocracia segue ritmos próprios nos corredores oficiais dos apoios, seguros e indemnizações, as 33 famílias penalizadas pelo incêndio de 15 de Outubro nos concelhos da Marinha Grande e Leiria, incluindo 11 que perderam edifícios de primeira habitação, mas também as empresas com danos causados pelas chamas, estão já no terreno, mão com mão, a repor a vida de todos os dias, um dia de cada vez. Com o respaldo da junta de freguesia e da câmara municipal, mas também do grupo Voluntários para Pedrógão Grande, Vieira de Leiria e Marinha Grande, com sede no armazém 19, na zona industrial de Vieira de Leiria. Que está há quatro meses e meio nas áreas ardidas e se prepara para lançar o projecto Adopte Uma Aldeia que visa garantir acompanhamento permanente às povoações mais isoladas, nos momentos de crise e fora deles.
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De volta às Eirinhas, Daniel Batista, que vive com o pai e a namorada, todos temporariamente alojados com familiares, explica onde vão ficar os novos abrigos para os nove cães da casa, que o acompanham nas saídas de caça. Falta um, o Flecha. Um podengo médio desaparecido desde que o fogo por ali andou. A manhã de sábado vai a meio, combina-se o almoço. "Temos lá sopa da pedra, convivemos todos pelo menos meia horita, é justo não é? Levas umas bejecas". Dany fica também a saber que há mais ajuda a caminho. "Segunda-feira vais receber aqui materiais de construção".
Os donativos continuam a chegar, muitos com origem nas empresas da comunidade. "Já tenho porta para aqui. Um colega do meu filho, lá da fábrica, arranjou uma porta de alumínio com vidraças para eu pôr aqui". Na habitação de Lurdes Fernandes, ainda em Vieira de Leiria, também se trabalha para voltar atrás no tempo, até aquela manhã de Verão fora de época, a 15 de Outubro, em que tudo estava no devido lugar. Mais uma vez, com os voluntários presentes. "Alguém me tire a medida destas paredes que é para eu mandar para uma firma que nos está a oferecer os azulejos".
"Eu próprio tenho recorrido a empresas", conta o presidente da Junta de Freguesia de Vieira de Leiria, Álvaro Cardoso, explicando que há "uma onda de solidariedade" no concelho da Marinha Grande e nos concelhos vizinhos que permite às vítimas do incêndio que destruiu 86% do Pinhal de Leiria prosseguir com as respectivas vidas. "As pessoas estão muito sensíveis a este flagelo que nos atingiu". No edifício da Junta de Freguesia, e em articulação com o Município, encontra-se a funcionar um gabinete de apoio psicossocial. E é ali na autarquia que são emitidos atestados de prejuízos indispensáveis para accionar os mecanismos de compensação.
Pinhal de Leiria: ICNF confirma desinvestimento. Na sexta-feira, 27, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) enviou ao JORNAL DE LEIRIA dados actualizados sobre a Mata Nacional de Leiria que evidenciam o desinvestimento público ocorrido nos últimos anos. Tal como publicado na última edição, entre 2000 e 2009, o Estado canalizou para o Pinhal do Rei investimentos no valor de 1.756.697 euros, a uma média de 175 mil euros por ano. Mas, de acordo com a informação agora disponibilizada pelo ICNF, no período de 2010 a 2014 o investimento caiu para apenas 287.939 euros, cerca de 72 mil euros por ano, em média. Em 2015 e 2016 não são referidos investimentos. As receitas obtidas pelo Estado no Pinhal de Leiria com a venda de material lenhoso e resina também baixaram: de 2 milhões de euros por ano entre 2000 e 2009 para 1,2 milhões de euros por ano no período de 2010 a 2016.
Cativadas as receitas da madeira ardida. Todo o valor obtido com a madeira ardida será investido no Pinhal do Rei. A garantia é dada pelo Município da Marinha Grande e resulta das reuniões já realizadas com elementos do Governo com vista à resolução de todos os problemas decorrentes do incêndio de 15 de Outubro, nomeadamente com o ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, Luís Capoulas Santos, ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, secretário de Estado das Florestas e do Desenvolvimento Rural, Miguel João de Freitas, e o presidente do ICNF, Rogério Rodrigues.
Agora liderada por Cidália Ferreira, a Câmara da Marinha Grande quer ser parceira no processo de reorganização e reflorestação do Pinhal do Rei. Vai começar por plantar 38.600 árvores, que representam cada munícipe. E envolver as escolas do concelho nesta iniciativa. No dia 27, Cidália Ferreira recebeu os representantes da comissão popular de defesa O Pinhal é Nosso. A presidente demonstrou a intenção de envolver na discussão acerca do futuro do Pinhal do Rei a Comissão Europeia e representantes de outras instituições, bem como da sociedade civil.
Voluntários. Quer adoptar uma aldeia? Saiba como
O projecto chama-se Adopte Uma Aldeia e nasce do grupo Voluntários para Pedrógão Grande, Vieira de Leiria e Marinha Grande. Eles, voluntários, estão no terreno há quatro meses e meio, nos concelhos penalizados pelo incêndio de 17 de Junho, no norte do distrito de Leiria. Agora querem chegar a todo o País. E transformar a resposta de emergência num acompanhamento permanente e continuado.
A proposta a que dão voz é um apelo à solidariedade: juntar voluntários e criar redes de apoio. Cada grupo responsável por uma aldeia. Sempre. Nos momentos de crise e fora deles. A trabalhar com a comunidade, as autarquias e com outros parceiros locais. Para travar o abandono dos territórios do interior e contrariar o isolamento da população.
A abordagem baseia-se numa perspectiva de desenvolvimento global. Nos primeiros fins-de-semana, "claramente para repor situações que o fogo destruiu"; depois, para auxiliar "noutras dimensões", que extravasam os prejuízos causados pelas chamas, explica José Almeida, do grupo Voluntários para Pedrógão Grande, Vieira de Leiria e Marinha Grande.
"Muitas vezes aquela necessidade de falar com alguém, pedir um conselho mais especializado, ler uma carta, que às vezes é preciso decifrar, fazer lóbi pela aldeia, porque muitas vezes há aldeias que ainda não têm comunicações, as pessoas não sabem quem é que devem contactar, que botão devem carregar, que pressão devem fazer, e quem está em Lisboa e em grandes centros urbanos por vezes tem esses contactos", adianta.
Na lógica do consenso e da aceitação por parte da comunidade, dos destinatários, a ideia passa por levar massa crítica aos territórios onde a desertificação constitui uma ameaça. "Pode haver uma criatividade em termos profissionais dos voluntários que estão ali de procurararem soluções, às vezes engraçadas, até para melhorar as condições de vida na aldeia", explica José Almeida, que é director de informática numa sociedade de advogados, em Lisboa, mas através da mulher tem ligações a Ansião e Pedrógão Grande.
O projecto Adopte Uma Aldeia parte da constatação que existe "um problema de desenvolvimento, em que mais de metade da população vive debruçada sobre o mar, esquecendo que tem nas suas costas todo um território que era lindíssimo", diz José Almeida. E tal como quando se adopta uma criança, é necessário "pensar em todas as dimensões", da escola à saúde. "Cabe-nos a nós, como familiares distantes, muitas vezes, é verdade, porque estamos em centros urbanos distantes, acompanhar as necessidades destas aldeias".