O novo Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória entrou em vigor no final do mês de Julho. Trata-se de “uma matriz comum para todas as escolas” e vertentes de ensino que define os valores, competências e princípios que devem orientar a aprendizagem.
Este documento afirma-se como a resposta na educação às novas necessidades sociais, que “convocam o sistema educativo para a definição de um perfil consentâneo com os desafios colocados pela sociedade contemporânea, para o qual devem convergir todas as aprendizagens, garantindo-se a intencionalidade educativa associada às diferentes opções de gestão do currículo”.
“Urge garantir a todos os jovens que concluem a escolaridade obrigatória, independentemente do percurso formativo adoptado, o conjunto de competências entendidas como uma interligação entre conhecimentos, capacidades, atitudes e valores, que os torna aptos a investir permanentemente, ao longo da vida, na sua educação e a agir de forma livre, porque informada e consciente, perante os desafios sociais, económicos e tecnológicos do mundo actual”, refere o documento.
No prefácio do novo perfil, Guilherme d’Oliveira Martins, ex-ministro da Educação e coordenador do grupo de trabalho, refere que não existe no perfil qualquer “tentativa uniformizadora”, mas o objectivo de “formar pessoas autónomas e responsáveis e cidadãos activos”, sublinhando a “base humanista” que lhe está subjacente.
O perfil “assume uma natureza necessariamente abrangente, transversal e recursiva”, enunciando valores, princípios e competências que se desejam obter de forma integrada em todo o currículo e não trabalhados de forma separada, em disciplinas.
Para Guilherme d'Oliveira Martins, “o aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a viver juntos e a viver com os outros e o aprender a ser constituem elementos que devem ser vistos nas suas diversas relações e implicações”.
Preparar para o imprevisto “Hoje, mais do que nunca, a escola deve preparar para o imprevisto, o novo, a complexidade e, sobretudo, desenvolver em cada indivíduo a vontade, a capacidade e o conhecimento que lhe permitirá aprender ao longo da vida. Aquele que reconhece o valor da educação estuda sempre e quer sempre aprender mais”, lê-se no perfil.
O aluno deve estar dotado de “literacia cultural, científica e tecnológica para analisar e questionar criticamente a realidade, avaliar e seleccionar a informação, formular hipóteses e tomar decisões fundamentadas no seu dia-a-dia”.
Deve ser “livre, autónomo, responsável e consciente de si próprio e do mundo que o rodeia” e “ser capaz de lidar com a mudança e a incerteza num mundo em rápida transformação”, com “competência de trabalho colaborativo e capacidade de comunicação”.
Será um jovem que “valorize o respeito pela dignidade humana, pelo exercício da cidadania plena, pela solidariedade para com os outros, pela diversidade cultural e pelo debate democrático” e que “rejeite todas as formas de discriminação e de exclusão social”.
Espera-se ainda que os alunos adquiram competências na área das linguagens e textos, e que sejam capazes de gerir projectos e tomar decisões para resolver problemas.
No relacionamento interpessoal, dá-se enfoque ao saber trabalhar em equipa e a comportamentos em contextos de cooperação, partilha, colaboração e competição. O desenvolvimento pessoal e bem-estar são também valorizados no perfil do aluno.
Nesta área trabalha-se a motivação para aprender, bem como a iniciativa e tomada de decisões fundamentadas. Os hábitos alimentares, a prática de exercício físico, a sexualidade e as relações com o ambiente e a sociedade são aspectos a desenvolver.
Os alunos devem compreender ainda os processos próprios à experimentação, à improvisação e à criação nas diferentes artes, tanto em relação ao património cultural material e imaterial, como à criação contemporânea.
A voz dos professores
Ermelinda Mendes, directora do Agrupamento de Escolas de Ansião, considera que o Perfil do Aluno “pensa-o como um cidadão completo, capaz de enfrentar as novas exigências da sociedade”.
[LER_MAIS] A docente recorda que “até há pouco, o conceito de bom aluno era de caladinho, sossegado, muito atento em sala de aula, muito estudioso e com classificações fantásticas de ‘rebentar a escala’, mas introvertido, tímido”. Esse é um perfil que “vai sendo pouco a pouco derrogado”, até porque “a escola é um sistema educativo que reflecte a sociedade”.
Além disso, Ermelinda Mendes salienta a ligação “cada vez mais estreita com o mundo empresarial” e a necessidade de “corresponder ao que os empregadores buscam”. E, segundo a directora, as empresas pretendem colaboradores “comunicativos, multifacetados, dinâmicos, que dêem respostas e que resolvam situações inesperadas, problemas do dia-a-dia de forma criativa”.
Não obstante, os conhecimentos técnicos que tenham interiorizado no seu perfil “o saber ser, saber estar, saber fazer o que o torna num cidadão completo”. Afirmando que o perfil traçado pela tutela “não é pouco exigente”, Ermelinda Mendes destaca ainda o “grande desafio deste século XXI – o saber técnico e as tecnologias”.
Em plena era digital e na expectativa de levar a bom termo o perfil desejável, muitas mudanças urgem na sala de aula e na escola, na sua organização e modus operandi”. A directora entende que “apesar de já não haver momento específico para aprender, o professor continua lá, como um elemento fundamental na relação de aprendizagem, e para humanizar a criança, o jovem, o aluno”.
“Estamos a falar de pessoas, não de máquinas. A par da era digital, os valores da cidadania são competências a desenvolver na aceitação do outro, na tolerância numa sociedade que é cada vez mais inclusiva e multicultural. Por isso, hoje em dia temos de projectar uma educação centrada nos denominados quatro C – Comunicação, Criatividade, Colaboração (trabalho colaborativo/interdisciplinaridade) e pensamento Crítico”, sublinha. A par desta alteração do paradigma do bom aluno, “a escola sente cada vez mais a necessidade de mudança e de transformação”.
“É preciso mudar este mundo, se não mudarmos o mundo este muda na mesma pelo que é necessário inovar, criar novos ambientes de aprendizagem, pois o futuro chegou mais cedo”, remata Ermelinda Mendes.
António Duarte, director do Agrupamento de Escolas da Guia, entende que os “os conceitos base do perfil assentam na diversidade e na complexidade do equilíbrio entre conhecimento e capacidade crítica para um cidadão activo”.
“O aprender a fazer, o 'do things right' em vez de 'do the right things', criação e inovação neste tempo de comunicação e informação, assumem-se como núcleo do perfil do aluno que pretendemos preparar para este século XXI”, acrescenta o docente.
Segundo o director, há ainda que destacar “a interiorização de referenciais hoje exigidos e que, de formas variadas” se tenta “plasmar nos documentos orientadores da educação: flexibilidade, adaptabilidade, versatilidade, confiança e resiliência”.
“Enquanto educadores e decisores, cumprenos tentar atingir estas metas, a bem das gerações que educamos e do futuro de todos nós.” Baseando-se no documento, Jorge Bajouco, director do Agrupamento de Escolas Henrique Sommer, na Maceira, afirma que “importa compreender e saber interpretar a sua estruturação, tendo por base os princípios, a visão, os valores e as áreas de copetências”.
“Valorizamos a ideia reflectida e definida de que valores e competências são vectores que permitirão aos alunos ‘intervir na vida e na história dos indivíduos e das sociedades, tomar decisões livres fundamentadas sobre questões naturais, sociais e éticas, associadas a uma capacidade de participação cívica, ativa, consciente e responsável’”, destaca ainda o docente.
Neste sentido, “as dez áreas de competências, definidas superiormente, apresentam-se como combinações complexas de conhecimentos, capacidades e atitudes centrais no perfil do aluno ao longo da escolaridade obrigatória, e que agora nos desafia a dar o melhor enquadramento, neste novo ciclo de intervenção educativa/ escolar”.
Paulo Guinote, docente e autor do blogue O Meu Quintal, considera que “a definição de um conjunto de competências para os alunos ao fim de um período de 12 anos de escolaridade, o qual abarca vários ciclos e uma multiplicidade de disciplinas, é algo demasiado ambicioso”.
Sem querer indicar quais as competências que entende serem as ideais, o professor alerta que se “pode confundir o que pretendemos dos “alunos” que finalizam essa escolaridade e os indivíduos, as pessoas, os cidadãos de 18 anos, que gostaríamos de encontrar na nossa sociedade”.
Constatando que o papel da educação é “central” na formação do aluno, Paulo Guinote afirma que “não se pode deixar para a vida escolar muito daquilo que deve continuar a pertencer a outras esferas da vida e formação dos indivíduos”.
Para o professor, o Perfil do Aluno centra-se em “competências de tipo mais geral, como se a escola tivesse de assumir uma série de responsabilidades em áreas da socialização que devem permanecer numa parte bastante importante, no ambiente familiar ou social dos alunos”.
Paulo Guinote entende que as competências definidas pela tutela “são uma espécie de amálgama que vai para além do que deve ser um “aluno” mas que, ao mesmo tempo, omite áreas importantes que deveriam ser específicas da “escolaridade”, nomeadamente as que se relacionam com as questões da memória”.
Professor ajuda a “descodificar”
Segundo Paulo Guinote, os resultados escolares continuam a ter importância neste perfil, “até porque continua a existir uma enorme pressão para a produção de sucesso na avaliação dos alunos”.
“O que pode estar em causa é uma alteração dos parâmetros usados para a definição do que é o sucesso, com a menorização do peso da aprendizagem dos currículos disciplinares tradicionais. Isso considero errado, porque o relacionamento interpessoal e tudo o que se relaciona com a socialização das crianças e jovens não pode ser entregue quase em exclusivo às escolas.”
Aliás, o docente alerta que “este excesso de intromissão na dimensão da formação pessoal e social dos indivíduos foi, historicamente, uma marca forte dos regimes totalitários”.
Perante as novas competências que a escola deve ajudar os jovens a adquirir, qual o papel dos professores? Paulo Guinote adianta que os docentes “parecem ser encarados, de forma algo caricatural, como meros “facilitadores” das aprendizagens dos alunos e não como transmissores de um corpo de conhecimentos, que um governante qualificou, para ele de forma pejorativa, como 'enciclopédicos'”.
Saber seleccionar informação
“Esperar que alunos ao fim de 12 anos sejam apenas 'capazes' de ir em busca do conhecimento ou 'competentes' para construir o seu próprio conhecimento não chega. Eles devem ter mais do que competências para estar devidamente equipados para distinguir, numa época de avalanche de informação, o falso do verdadeiro, o que está estabelecido de forma razoavelmente segura do que é mera especulação ou mesmo falsidade”, salienta Paulo Guinote, ao referir que o “papel dos professores é essencial para isso, não apenas como alguém que 'conduz', como um maestro que apenas dá indicações de músicos que já conhecem o seu ofício”.
O docente entende que desde os seus primórdios que a educação se baseou “numa relação entre professores e alunos no sentido da transmissão do conhecimento” e que a “dimensão social foi sempre secundária”.
“Os discípulos de Sócrates poderiam ir 'socializar' entre si e o seu mestre, mas em primeiro lugar iam 'aprender' com ele. O argumento da necessidade de um novo paradigma para o século XXI é paródico. As escolas continuam a ter uma função central que atravessa os tempos e os professores não podem ser encarados ou apresentados como uma espécie de “animadores culturais” cujo papel é equivalente ao dos alunos”, acrescenta.
Segundo este professor, “num tempo de aceleração e multiplicação dos estímulos, o professor deve ser o elemento humano essencial para “descodificar” este novo mundo”. Conciliar as novas competências do Perfil do Aluno com as metas curriculares será um novo desafio.
“Como os actuais decisores políticos enveredaram por uma lógica de definição de ‘conhecimentos essenciais’, podemos sempre considerar que só se deve cumprir uma espécie de selecção de metas ou conteúdos. A metodologia de projecto, levada ao seu extremo em toda a escolaridade básica, pode conduzir muito rapidamente a um abandono do efectivo cumprimento de quaisquer metas ou programas. Mesmo que depois seja necessário aos professores justificar porque o fizeram nas plataformas digitais que cada vez mais existem para controlar o seu trabalho”, afirma Paulo Guinote.
A tutela, sobretudo pela voz do secretário de Estado da Educação, João Costa, defende que a escola deve ensinar a seleccionar informação e a fornecer conhecimentos que não estão disponíveis no “google”.
Como ficam disciplinas como História ou Geografia? Paulo Guinote considera que, em especial a História “anda a ser menorizada há bastantes anos com a redução da carga horária no currículo do ensino básico, bem como a Filosofia (que ajuda a pensar para além do Google) no ensino secundário”.
Para este docente, “parece existir uma imensa aversão de um grupo de pessoas com crescente poder na definição das políticas curriculares em relação a disciplinas que pretendem transmitir aos alunos ferramentas para perceber o mundo em que vivem, seja através da perspectiva do trajecto histórico da Humanidade, seja da aprendizagem de técnicas essenciais para a compreensão e desmontagem de discursos falacciosos”.
“A História e a Filosofia parecem ser os principais alvos a abater por quem quer criar alunos com ‘pensamento crítico’ ou ‘criativo’, mas sem as bases para o exercer de um modo informado”, critica.
Autonomia e Flexibilidade Curricular
Aprender História ou Geografia num semestre, ou usar o telemóvel na sala de aula para ouvir música enquanto se desenha, eis o que os alunos podem fazer nas escolas que aderiram ao projecto-piloto de autonomia e flexibilidade curricular. Apenas são abrangidos alunos dos 1.º, 5.º e 7.º anos, do 10.º ano e do 1.º ano de cursos organizados em ciclos de formação (como os cursos de formação profissional ou artística).
Na mesma escola, haverá turmas que seguem o novo modelo e outras que não. A decisão cabe às próprias escolas. Em declarações à Lusa, o secretário-geral da Federação Nacional da Educação (FNE), João Dias da Silva, lembra que, face a modelos de aprendizagem diferentes, "é fundamental que haja equidade no tratamento de todos alunos". Com ele, a tutela pretende, em respeito pela "autonomia das instituições e dos seus profissionais", promover "melhores aprendizagens, indutoras do desenvolvimento de competências de nível mais elevado", lê-se no despacho.
Na prática, são as escolas que decidem a forma como vão ensinar os seus alunos para chegar às metas curriculares definidas. No fundo, "é fazer diferente para atingir os mesmos objectivos, um desafio para alunos, professores e famílias", disse à Lusa o presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais, Jorge Ascensão, para quem a flexibilidade curricular pode ser um "incentivo à aprendizagem", na medida em que pressupõe "trabalho mais criativo e em equipa", envolvendo professores de várias disciplinas.
"Os alunos se gostam do que aprenderam, não esquecem e estão mais bem preparados", disse, defendendo que o projecto deveria levar o Governo a pensar num novo modelo de avaliação e acesso ao ensino superior, que permitisse "certificar a montante" dos exames nacionais "os conhecimentos dos alunos", com as universidades a definirem "o perfil mais adequado" dos estudantes para os cursos leccionados.
Na região aderiram voluntariamente ao Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular os Agrupamentos de Escolas Colmeias e D. Dinis (Leiria), Batalha, Marinha Grande Nascente, de Ourém e Conde de Ourém, Externato Cooperativo da Benedita (Alcobaça), Colégio Dinis de Melo (Leiria), Instituto Educativo do Juncal (Porto de Mós), Colégio João de Barros (Pombal), Centro de Estudos de Fátima e Colégio de São Miguel (Fátima