Um dia, uma vidente disse-lhe que a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen faz parte da sua equipa de guias espirituais e a provocação lê-se logo no parágrafo de abertura. A primeira obra assinada por Ana Sofia Elias chega depois de “uma primavera” de “ebulição criativa” e “combustão”. Mais “sprint” do que “maratona”, Uca é um objecto híbrido “difícil de classificar, categorizar” e “catalogar”, admite a autora. Entre o registo biográfico e a ficção, entrega aos leitores, com poesia e prosa, “o canibalismo” de 15 anos em Londres – onde Ana Sofia Elias continua a residir – e o efeito do “contágio” por “poetas” e “filósofas” de militância “feminina e feminista”.
“O livro escreveu-me a mim em vez de ser ao contrário”, comenta a escritora natural de Leiria, que se estreia na literatura aos 40 anos. “Comecei e não consegui parar”, resume. “É uma auto-escavação, há ali um processo expiatório”.
Uca oferece publicamente a “condensação” e o “destilar” da experiência de Ana Sofia Elias em Inglaterra, onde iniciou uma investigação académica em estudos críticos de media. “O capitalismo”, afirma, “usurpou o discurso feminista para se reinventar e vender as mesmas coisas às mulheres, mas de outra forma: é para o empoderamento, não é para agradar ao homem”. E, sim, quando se confrontam “as novas imagens do pós-feminismo” e “a cultura da beleza” através do escrutínio da psicologia social, subsistem diferenças locais, “por exemplo, para as mulheres portuguesas, o conservadorismo de meio século de ditadura salazarista”, apesar do impacto dos discursos globalizados que os livros, os filmes e a música popularizam.
“Foi graças ao meu contacto com muitas coisas que li durante os estudos de doutoramento que este livro foi possível”, realça Ana Sofia Elias. “Foi isto que me permitiu perceber a importância de adoptar o que eu chamo erotismo, que acho que é um tema muito forte no meu livro, mas que não pode ser só entendido como uma ferramenta de eu enunciar o corpo sexualizado, o prazer sexual da mulher. Tem de ser desaparafusado desse entendimento muito restrito e tem de ser entendido como a possibilidade de nós, que fomos apagadas historicamente da literatura e do espaço público, termos acesso a um instrumento para reclamar o corpo e a identidade através da escrita”.
Uca, um género de caranguejo também conhecido como caranguejo-violinista, torna-se a palavra-passe para um exercício “sem censuras” nem “decapitações”, segundo Ana Sofia Elias. “Essa conexão com o corpo, com a corporalidade, em muitas vertentes, que não é só a questão do corpo desejante, mas a parte psicológica, emocional, sem precisares de uma chave de decifração externa, ninguém te está a definir, tu é que estás a trazer tua mundividência, nos teus termos, nas tuas contradições, nos teus excessos, sem coletes de força”.
Influenciada por Maria Teresa Horta, Sophia de Mello Breyner, Teolinda Gersão, Dulce Maria Cardoso, Raquel Serejo Martins, Maria Judite de Carvalho, Paula Rego ou Katherine Angel, Ana Sofia Elias procura “a celebração da feminilidade em diálogo com o outro” através de um primeiro livro já adjectivado como “irreverente” e “tempestuoso”, escrito em inglês e português, ilustrado por Sylvietta e editado pelo grupo Poética.
Lançado na Feira do Livro de Lisboa, Uca foi apresentado já este mês na livraria Arquivo, em Leiria. Para o futuro, quem sabe, fica outro projecto, de textos inspirados na tradição do flamenco.