Sendo a Cáritas uma associação católica, existem regras de apoio a pessoas de outras crenças?
De todo. Temos todas as religiões. Basta ver o tipo de nacionalidades que apoiamos – dezasseis -, e a maior parte nem é católica. Respeitamos muito a individualidade das pessoas. O papa Francisco defende uma Igreja para todos e a nossa acção também é para todos. Não nos interessa a religião, a sexualidade ou a etnia, estamos aqui para as pessoas, não interessa de onde venham.
Como garante que não há sobreposição de apoios?
Há uma coordenação. Trabalhamos em rede e os serviços estão articulados. Há muitas pessoas que nos são encaminhadas, porque, muitas vezes, os serviços já não têm capacidade de resposta. Quando nós também não conseguimos dar resposta canalizamos algumas famílias para outros serviços, de forma a promovermos a importância dos grupos sociocaritativos no local. Articulamos com a Conferência São Vicente de Paulo, a quem damos o apoio que depois o canaliza. Porquê? Porque eles estão próximos e comunicar com proximidade é uma vantagem. Tentamos sempre que haja este papel coordenado com estas organizações e serviços e com os grupos sociocaritativos nas paróquias.
Quais são as principais fragilidades sociais que identifica na região?
Muitas e algumas muito profundas mesmo. Por exemplo, os apoios que nos pedem mais são para a saúde, pagamento de despesas para as necessidades básicas de água e luz. Isso é diário. Depois temos todo o tipo de apoio desde a alimentação ou vestuário. Tudo o que possa dar dignidade à pessoa, estamos cá sempre. Anteriormente, falava-se muito do desemprego e tinha efectivamente um impacto muito grande na vida das pessoas. Neste momento, estamos com uma realidade completamente diferente. Há emprego, mas os ordenados são baixos e as rendas absorvem o rendimento e as pessoas ou pagam a renda ou a alimentação.
Os novos pobres estão na classe média?
Sem dúvida. O ordenado não é suficiente para as despesas do dia-a-dia. Paralelamente, temos a migração. As pessoas vêm à procura de um futuro melhor e deparam-se com rendas altíssimas. Temos algumas famílias, sobretudo de África, que vêm à procura de melhores cuidados de saúde para os seus filhos. Aliás, os processos novos que estamos a abrir são de Angola. Até aqui eram mais do Brasil. E são mães sozinhas com os filhos menores, sem as mínimas condições. Numa visita, encontrámos uma família a dormir em cima de paletes, numas águas furtadas. Eram três filhos, um com trissomia 21, e uma mãe.
E a comunidade brasileira está mais estável?
Está melhor, porque uma das grandes mais-valias que temos é o programa Incorpora, financiado pela Fundação La Caixa, que emprega pessoas. Este ano já conseguimos pôr oito pessoas no mercado de trabalho. Entre 2021 e 2024, pusemos 64. São pessoas que nos procuram e que conseguimos encaminhá-las para as empresas. É uma forma de lhes dar dignidade e rendimentos. Não é só vir pedir, há contrapartidas. Acompanhamos todo o percurso dessas pessoas. A maior parte têm sido brasileiros.
E se recusarem trabalhar?
Às vezes recusam. Se não há uma justificação sólida, se lhes mostramos o caminho e não querem percorrê-lo, não há apoio. Têm de ser responsáveis. É também uma forma de dignificar o dinheiro que nos é confiado.
Procuram ‘ensinar a pescar em vez de dar o peixe’?
Tentamos que assim seja. Procuramos sair da nossa zona de conforto, que é o assistencialismo, e trabalhar as competências. Todos os nossos projectos assentam nesta questão de trabalhar as competências das famílias de forma directa ou indirecta. Por exemplo, o projecto Explica-me, que são explicações solidárias, tem um impacto brutal. Há jovens que acabaram por tirar o mestrado, apesar de todas as dificuldades, graças ao apoio que tiveram nestas explicações. E dizem-nos: ‘não têm noção do impacto que o Explica-me tem na nossa vida’. Ao verem os filhos motivados na escola, a terem objectivos de vida, tem um efeito de contágio muito grande para os pais. O assistencialismo, como era há uns anos, acabou. Sentimos que mudamos a vida das pessoas e não é só na hora, mas no futuro. E tudo isto é promovido por voluntários. A maior riqueza da Cáritas de Leiria é o nosso capital humano, ou seja os nossos voluntários. Temos uma grande franja de voluntários jovens. Aliás, a Cáritas Jovem Nacional foi criada em Leiria. As outras Cáritas estão a aderir às Cáritas Jovens, replicando a nossa, que é uma referência a nível nacional. É um motivo de orgulho.
Quais os grupos populacionais mais vulneráveis?
Um dos últimos estudos da Fundação Francisco Manuel dos Santos diz que 9 % dos trabalhadores vivem em pobreza. E estamos a verificar que há um grande acréscimo de pobreza nos idosos, devido às pensões baixas e há um decréscimo nas crianças. O nosso programa pretende inverter a curva da pobreza e damos prioridade às crianças, através de um programa específico. Mas constatamos que os idosos estão com dificuldades, mas não nos procuram, porque sempre se habituaram a viver com o que tinham.
Têm algum projecto para chegar aos idosos?
No ano passado, pela primeira vez, fizemos uma colónia para idosos não institucionalizados e fez a diferença na vida deles. É um projecto que se vai manter. As pessoas já nos telefonam a saber quando é que abrem as inscrições. Não é só estar na praia, mas há sempre actividades. Replicamos um bocadinho a nossa colónia de crianças para eles. E isto, acima de tudo, ajuda a aproximar-nos desta população. Neste momento, as novas gerações que vivem com maior dificuldade já não têm tanta vergonha de recorrer aos serviços. Mas na população mais idosa a chamada pobreza envergonhada ainda está muito assente. É uma questão de dignidade. A vergonha também nos dificulta o trabalho. Queremos muito fomentar e voltar a ter uma relação de proximidade com as comunidades, através dos grupos sociocaritativos. Vamos ter mais projectos para idosos, porque é uma sociedade muito vulnerável. Estão muitos muito desprotegidos e isolados.
Que projectos são esses?
Ainda não posso divulgar, porque estão numa fase muito embrionária.
Quem trabalha também não tem essa vergonha?
Sim e são esses que nos preocupam. Temos sempre forma de comprovar se a pessoa precisa e temos de olhar caso a caso. Não basta chegar aqui e dizer ‘eu preciso’. Tem de provar que precisa.
O custo da habitação é o principal problema de quem vos procura?
É um dos factores que pesa muito, porque se o dinheiro vai para a renda já não há para as outras coisas. Estamos a falar de rendas de 600 e 700 euros com pessoas que recebem o ordenado mínimo.
De que forma é que vocês apoiam as pessoas?
Temos o desperdício alimentar. Este ano já evitámos que 17 mil euros de bens alimentares fossem para o lixo, numa parceria com a Jerónimo Martins. É certo que há partes que canalizamos para o centro de acolhimento, mas 80% desta fatia vai para as famílias. Damos apoio financeiro e este ano subimos os valores. No primeiro trimestre deste ano já demos cerca de 3 mil euros em ajudas. Apoiamos no pagamento de água, luz, gás, saúde, transporte… É tudo aquilo que consideramos essencial para o bem-estar das famílias.
Leiria tem sem-abrigo, menos visíveis do que em Lisboa. Há um acréscimo de fome em Leiria?
Não sei precisar números, mas sei que efectivamente há mais do que há 5, 6, 7, 8 anos. Isso também tem a ver com o crescimento de Leiria, que, como é óbvio, traz algumas problemáticas sociais. Mas, Leiria até tem uma rede bastante boa de resposta neste sentido. A Cáritas financia o Centro de Acolhimento todos os meses e aí também se responde à fome.
De onde vêm os vossos apoios, além da Igreja?
Não temos apoios estatais. Toda a base são os donativos. Fizemos agora o nosso peditório, que é uma das fontes de rendimento. Temos pessoas que todos os meses nos ajudam monetariamente e temos alguns apoios da Cáritas Portuguesa.
E as empresas estão abertas para vos apoiar?
Temos de ser imaginativos e criativos a fazer eventos, que é uma forma de angariação e as empresas, muitas vezes, associam-se. Por exemplo, no ano passado, tivemos duas ou três empresas que nos apoiaram bastante na realização da noite de fados. Considero que as pessoas são solidárias. Nunca se fechou uma porta e nunca se pediu nada, quer a empresas quer a particulares, que tenham recusado.
Quantas pessoas apoiaram nos últimos anos?
Em 2024, foram 422 famílias, 712 atendimentos sociais e apoios financeiros de 12 mil euros. No primeiro trimestre deste ano registámos 36 novos casos, 185 atendimentos sociais, 115 famílias. A maior parte são monoparentais, o que é uma preocupação. Abrangemos 328 pessoas, das quais 126 crianças. A loja solidária apoiou 88 famílias: 229 pessoas, 80 crianças. Não vêm todos os meses, porque também não vamos à loja todos os meses comprar roupa. É uma forma de as educar. Os nossos utentes levam de forma gratuita, mediante uma análise que é feita de acordo com o agregado familiar. Têm x peças. Às quartas-feiras à tarde, abrimos a loja para as outras pessoas que não preenchem os critérios para receber esta ajuda, mas que podem comprar roupa a um preço simbólico.
Conseguem sempre apoiar quem vos procura?
A casa tem de ser muito bem gerida. As pessoas procuram-nos numa emergência. Mesmo o SAS [Serviço de Apoio Social] liga a informar que tem uma família que lhe vão cortar água ou luz naquele dia. Nós damos uma resposta rápida. Intervimos muito na emergência. Ainda ontem apareceu uma situação de pessoas idosas que já estavam sem água há uma semana. Chegaram ao limite. Nós avaliamos e orientamos. Quem tem mais dificuldades: as pessoas da cidade ou as rurais? Nas zonas rurais, arrisco a dizer que existe um sentido mais de comunidade e as pessoas têm as suas hortas… Nos meios mais urbanos, não há esse sentimento tão de comunidade e aí as pessoas procuram-nos mais.
O Estado deveria ter outro tipo de políticas e de apoios?
O Estado social em Portugal existe, porque existe uma Igreja Católica que é muito presente na área social e substitui o Estado em muitas acções. Estamos a falar de muitas respostas como ERPI [estruturas residenciais para idosos] – e já estou a afastar a Cáritas – que, muitas vezes, não conseguem pagar as despesas que têm. Ao menos pagassem um técnico para podermos dar resposta às pessoas que nos procuram. O Município de Leiria funciona bem na área social e no apoio às instituições. Agora, a nível nacional, o Estado devia ter um outro olhar para este tipo de instituições.
Que soluções poderia haver para esbater a pobreza?
O problema é estrutural. Da maneira como temos os ordenados, que não chegam para a habitação, como é que vamos ter uma vida digna? Tem de haver uma resposta mais concertada a nível da habitação social também. Devia haver um trabalho mais em rede e concertado, e uma visão mais a prazo.
Acredita que algum dia será possível erradicar a pobreza?
Não. Em Portugal temos 1,8 milhões de pessoas pobres. Vivem com rendimentos abaixo dos 600 euros por mês. Por isso é que os pedidos de ajuda estão a aumentar. É impossível, infelizmente, erradicar a pobreza, porque não é só económica. Estamos a falar de saúde mental ou de outros tipos de pobreza. Com estas políticas, a curto prazo, não se erradica a pobreza e nem sei se diminui.
Qual é o nível de pobreza na nossa região?
Neste momento é mais económica e a saúde mental tem grande influência. Todos os meses recebemos novos casos, o que significa que as coisas não estão a fluir.
Quais os novos projectos da Cáritas de Leiria?
Fomos convidados para ser intercoordenadores do projecto Proinfância, financiado pela Fundação La Caixa, em parceria com outras instituições. Estamos já a preparar um projecto direccionado para os grupos sociocaritativos e gostávamos de ter capacidade para alocar um técnico para fazer atendimento nas paróquias. Queremos ter um papel muito mais activo na comunidade diocesana. Estamos um bocado focados em Leiria, mas a diocese é abrangente e as dificuldades também.