Filho e neto de professores, casado com uma professora, Joaquim Ruivo tem 66 anos e reside na freguesia da Caranguejeira, concelho de Leiria, numa casa construída pela família há várias gerações.
Licenciado em História, foi professor do ensino básico e secundário antes de, há 12 anos, se tornar director do Mosteiro da Batalha. Deixou o cargo a 31 de Março, por aposentação. E já tem planos: concluir a pós-graduação e dedicar mais tempo a algumas paixões, como a agricultura, a marcenaria e a relojoaria.
O percurso do presidente da Assembleia Municipal da Batalha (e membro dos órgãos sociais da ADLEI – Associação para o Desenvolvimento de Leiria) inclui, também, uma passagem de 16 meses pelas forças especiais, na década de 80. “Foi um curso que ficou na história dos Comandos”, assinala. Dos 20 formandos, 17 recusaram a boina, em “contestação ao tipo de recruta” a que eram sujeitos.
Que mistérios ainda se escondem no Mosteiro da Batalha? O que há para esclarecer ou estudar?
Quando chegamos pensamos que o Mosteiro está mais que estudado e descoberto, e depois começamos a verificar que, afinal, não está. Há muita coisa a estudar. E, na realidade, o Mosteiro durante 150 anos foi o grande estaleiro de inovação artística e arquitectónica em Portugal. Um exemplo para mim foi a Capela do Fundador. Olhamos e vemos vestígios de pinturas. Ora, só em 2016 um grupo de investigadores, coordenado pela professora Joana Ramôa, decidiu investigar a fundo, numa equipa multidisciplinar, essas pinturas. Concluímos que a maioria das abóbadas e todos os túmulos foram originalmente pintados e que a cor não era só dada pelos vitrais.
O Mosteiro é hoje um monumento mais estudado?
Sem dúvida. E vou dar-lhe outros dois exemplos. O túmulo conjunto de D. João e D. Filipa de Lencastre, na Capela do Fundador. Esse túmulo contém epígrafes. Sendo um dos túmulos mais importantes da nossa tumulária medieval, não se encontrava uma tradução completa e crítica do latim para o português dessas epígrafes nem estava feito o seu estudo epigráfico. E, um dos projectos que logo passado alguns anos [após tomar posse] lancei, foi convidar especialistas a fazer este estudo, que está pronto a publicar. Um grande desconhecimento de todo o conjunto edificado levou-me a orientar muitos dos meus esforços, enfim, não tanto para a área dos estudos artísticos e arquitectónicos, mas mais para a área das geociências e das engenharias. E daí, um primeiro passo, um encontro com o departamento de engenharia do IPL [Politécnico de Leiria] e logo a seguir com o departamento de geociências da Universidade de Aveiro e o departamento de engenharia da mesma universidade. Foi feito aqui um levantamento geofísico exaustivo e isto permitiu-nos confirmar que o Mosteiro está assente em duas zonas geologicamente diferenciadas e identificar com precisão o local do primeiro sepultamento de D. Filipa de Lencastre.
O que seria interessante sujeitar a investigação agora?
Esse conjunto de investigadores da área das geociências de Aveiro, Porto e Coimbra integraram pela primeira vez três tipos de investigação, com georadar, resistividade eléctrica e vibrações sísmicas. Foi considerado pelas revistas mundiais da especialidade como um estudo relevante e inovador no âmbito das geociências. Mais: a tecnologia utilizada nesse estudo foi citada em vários congressos mundiais da especialidade e está a ser utilizado, por exemplo, nas pirâmides astecas e em vários sítios do mundo. Outra sequência de uma investigação essencial, com doutorandos do departamento de engenharia da Universidade de Aveiro: como é que está a saúde estrutural do Mosteiro? Esse trabalho está em pleno progresso e tem como objectivo fundamental monitorizar onde há fissuras, onde há pequenos deslocamentos e qual a sua origem. Trata-se de estudar para prevenir.
Quais são as principais ameaças e riscos sobre o edifício?
Um grande risco é não haver no nosso País uma política patrimonial de prevenção. A falta de orçamento e os constrangimentos administrativos são tantos que nós vamos vendo à nossa frente o monumento degradar-se, às vezes em aspectos superficiais: janelas, falta de limpeza nos terraços, incapacidade de todos os anos limpar as ervas que começam a degradar as juntas e a permitir infiltrações. Não havendo essas acções preventivas, o que acontece é que as coisas se vão deteriorando, a tal ponto que passado 10, 15, 20 anos tornam-se necessárias intervenções de centenas de milhar de euros. Esta falta de uma política claramente vocacionada para a defesa do património sente-se constantemente nos nossos monumentos. Estamos sempre à espera de fundos comunitários.
O orçamento é sempre pequeno?
Claramente. Todas as receitas vão para um único bolo. E depois a tutela gere as fatias dessas receitas, que não são suficientes para 37 serviços.
Não têm autonomia na gestão.
Não. E mais: durante muitos anos, os monumentos património mundial foram como que uma espécie de meretrizes do sistema patrimonial, muito desejados pelas receitas que encaixavam, mas pouco valorizados pelas actividades que desenvolviam. Essa época passou, com uma nova geração de directores que lançaram esses monumentos numa dinâmica cultural e de parcerias com instituições universitárias, nunca vista, exigindo mais recursos.
No plano internacional, o que torna o Mosteiro da Batalha diferente de outros monumentos da mesma época?
O que é que leva a Unesco nos anos 80 a classificar este monumento, os Jerónimos, Alcobaça e o Convento de Cristo como monumentos de carácter universal e excepcional? Precisamente, não só a sua importância no contexto nacional, mas, sobretudo, porque são obras-primas do gótico ou do manuelino, pela sua arte e arquitectura. Isto é que os torna únicos também no mundo.
Faz falta outro modelo de financiamento?
Faz. O que é que os directores dos monumentos património mundial, em especial, sentem? Que sendo realmente os bens patrimoniais mais visitados, os que têm receitas acima das despesas e os mais visitados, raramente tiram qualquer benefício dessa situação especial. O que parece injusto.
São financiadores do sistema.
Claramente. No tempo da DGPC [Direcção-Geral do Património Cultural], entre museus, palácios e monumentos, os únicos com resultados operacionais positivos, receitas maiores do que as despesas, foram durante anos seguidos os monumentos património mundial: Jerónimos e Torre de Belém, Batalha, Convento de Cristo e Alcobaça.
O que é que defende?
Pela lei, nós [monumentos património mundial] até podíamos ser uma entidade pública com autonomia, com a sua estrutura de pessoal, com a sua autonomia para gerir um orçamento próprio a partir das receitas, poder receber subvenções estatais, candidatarem-se a fundos europeus e receber apoios mecenáticos. Defendo, e peço desculpa se eventualmente estou a entrar em contraciclo com o que pensam os meus colegas directores, a criação de uma entidade pública empresarial para estes três monumentos da região centro [Mosteiro da Batalha, Mosteiro de Alcobaça e Convento de Cristo em Tomar], com um único conselho de administração. Estes monumentos deveriam ter um estatuto diferenciado, que a nova lei ainda não contemplou. Por que é que uma única entidade [Museus e Monumentos de Portugal] integra e tutela 37 serviços? É um monstro, cheio de problemas. O que é verdadeiramente conhecido lá fora, são os monumentos património da humanidade. Porque, realmente, são obras fantásticas do engenho humano.
O Mosteiro da Batalha continua a ser dos mais visitados, mas com menos público nos últimos anos.
O auge foi em 2017, muito associado à celebração dos 100 anos das aparições, porque obviamente estamos perto de Fátima. Depois, em 18 e 19 houve, naturalmente, uma quebra, mas mantivemos o número de visitantes acima de 16, perto dos 500 mil visitantes. Entretanto, veio a pandemia. Os três primeiros meses [de 2020] antes do estado de emergência e encerramento dos serviços perspectivavam um ano acima de 2017. E ainda não recuperámos do efeito pandemia, isto é, ainda não chegámos aos números de 2016.
É um desafio interessar as crianças e os jovens pela história e em concreto pela história do Mosteiro da Batalha?
É um desafio e uma urgência. Sou professor. Qualquer professor tem consciência que há uma geração de jovens que não está a conhecer o seu património, não está a conhecer a sua história, não se está a identificar com o seu passado e com o legado que outros nos deixaram.
Como é que têm contrariado essa tendência?
Quando cheguei, a primeira coisa que pedi ao serviço educativo foi os números de visitas escolares. E fiquei muito precupado porque tínhamos apenas a visita de 17 mil alunos por ano, de todo o País. Então, convidei imediatamente um grupo de teatro, O Nariz, a criar visitas encenadas. Não podemos esperar que os alunos venham até aqui só para ver pedras e túmulos e que miúdos de 12, 14, 15 anos, ou mais novinhos, possam ficar abismados por tudo isso. Há necessidade de uma narrativa que os envolva no conhecimento do Mosteiro. Visitam-nos 25 mil, 27 mil alunos, o que é relevante.
Estamos mais atentos e disponíveis para cuidar do património do que quando entrou no cargo?
Tenho sinais contraditórios. Sob o ponto de vista da preocupação da tutela, o Ministério da Cultura, acho que a extinção da DGPC foi uma boa medida. Este novo organismo tem mais autonomia. Não tem os constrangimentos que uma direcção-geral tinha. Há aqui, portanto, um caminho de maior esperança. Agora, é evidente, quando são criadas duas entidades, MMP [Museus e Monumentos de Portugal] de um lado, Património Cultural do outro, podemos questionar: qual é, ou como se estabelecerá, a relação, o convívio entre estas duas instituições? Como é que se estrutura o seu relacionamento? Neste momento, é algo muito difícil de explicar.
É urgente desviar o trânsito da frente do Mosteiro?
É urgente por vários motivos. E há que ser honesto: todas as análises e avaliações que foram feitas não indicam vibrações que possam pôr em causa a saúde estrutural do monumento.
Então, quais são as consequências?
O ruído, o excessivo tráfego de carros pesados, a crescente poluição e a agressão à paisagem patrimonial.
Pode influenciar ou condicionar a avaliação que a Unesco faz?
Ainda não. Estou convencido que, se o monumento fosse agora candidato a património da humanidade, a Unesco não o integraria na lista, precisamente, pela estrada. Sempre, nos relatórios periódicos da Unesco desde os anos 80, está lá: o impacto da antiga nacional 1, o IC2, sobre a paisagem patrimonial, e o projecto de retirar o tráfego dali. Desde 83. Os candidatos a deputados vêm ao monumento por altura das eleições e são os primeiros a concordar que o trânsito tem de sair dali. Quando são Governo, esquecem o assunto.
Como é que um professor de História, como é o Joaquim Ruivo, olha para o mundo na actualidade?
Se voltasse a dar aulas, procuraria, mais uma vez, continuar a passar aos meus alunos a perspectiva de que este é o nosso mundo e, para nele continuarmos a viver, temos de o transformar. Agora, a visão que o conhecimento da História nos traz, deixa-nos um pouco mais preocupados. Quem conhece a História acaba por ver que as acções do ser humano são muito iguais em situações semelhantes. Nunca são exactamente iguais, mas a nossa mesma maneira de agir faz parte da nossa condição de humanos. Quando se analisa esta conflitualidade latente em todo o mundo, e quando se começam a ver os antecedentes da primeira guerra e da segunda, não se tem muita esperança que este caminho dê um bom resultado.