O que têm em comum um artista de jazz e uma banda que assenta muito da sua música numa sonoridade trabalhada ao pormenor aliada a efeitos audiovisuais? Poder-se-ia dizer que esta era uma parceria impossível, mas o resultado de duas semanas de co-criação numa residência colaborativa, única, na produção de originais, vai ficar na memória.
Salvador Sobral assume mesmo: “Não quero dizer que tudo é possível, porque é um bocadinho foleiro, mas não há limites à criatividade. Tudo é possível com eles. Parece que uma ideia, mesmo muito estapafúrdia, de repente pode fazer sentido. Às vezes ficamos preocupados e presos nas dificuldades logísticas e com eles não”.
O artista revela que para os First Breath After Coma (FBAC) “primeiro é a ideia e a criação” e depois “logo se vê se é possível”. E tem sido possível. “O que vamos apresentar, nunca vi nada assim em espectáculo, tão polivalente.”
Fechados na Casa Varela, em Pombal, numa residência artística que os desafiou a fazerem algo fora da caixa, os momentos de alquimia entre a música, letras e efeitos audiovisuais deram corpo a um conjunto de temas, que serão apresentados esta sexta-feira e sábado no Teatro-Cine de Pombal, em dois concertos esgotados. Dois temas captados durante a actuação ao vivo ficarão registados em formato físico, com a gravação e edição limitada de um vinil 7.
Temas originais
Todos os temas são originais e quase partiram do zero. “Eu tinha letras perdidas. Tinha um poema que o Gonçalo M. Tavares me mandou um dia e que eu adorava. Os FBAC tinham uma ou duas ideias musicais”, conta Salvador Sobral, ao referir que a excepção é uma canção basca.
Roberto Caetano acrescenta que a única música que tinham era o tema Queen, mas nunca foi lançada. Quando se juntou à banda de Leiria, três dias depois, compuseram de imediato três ou quatro temas. “Fomos super produtivos do ponto de vista musical e estávamos tão confiantes que o segundo dia foi péssimo. Não aconteceu absolutamente nada”, revela Salvador Sobral.
A capacidade de se encaixar perfeitamente que os FBAC reconhecem ao artista facilitou o desenrolar do projecto. “Se estamos admirados porque isto correu tão bem e rápido? Sim, mas a verdade é que houve também trabalho”, frisa Roberto Caetano.
Salvador elogia os FBAC a quem aponta um profissionalismo fora de série e uma dedicação exímia que vai ao pormenor da sonoridade, que tem de estar perfeita. “Eles não conseguem fazer uma coisa simples. Têm sempre uma visão mais além. Vamos fazer um concerto, mas vai ser uma performance, em que existe um cenário, uma casa, vamos filmar… Cada um deles tem muito em que pensar e temos de equilibrar a música com isso tudo”, constata Salvador.
O artista sublinha que a banda de Leiria tem um “cuidado no som e na procura sonora, que nunca acaba”. “Podem passar duas horas à procura daquele som perfeito, daquela cor e textura, o que é um bocadinho desesperante. Devo confessar que não estou habituado a isso, mas adoro esse cuidado que vai além da música”, adianta. Surpreendido com toda esta dinâmica, o artista confessa que na segunda semana de criação já começou a ver a “luz um bocadinho maior”.
E enquanto a banda se debruçava sobre todos os aspectos extramusicais, Salvador tentou focar-se mais no lado musical. “Ele dá prioridade à canção. Nós não temos tanto isso da performance, da expressão enquanto musical, de letra ou vocal. Para o Salvador é uma coisa muito mais natural. É quase uma extensão do corpo”, expressa Telmo Soares, ao reconhecer que os FBAC “são muito mais cerebrais a fazer as coisas e vão aos pequenos sons”.
Já Salvador Sobral trouxe uma energia extra, diz João Marques. É espontâneo e deixa fluir os rasgos que lhe vão surgindo e que acrescentam qualidade à música mais cerebral da banda. Telmo Soares admite que o pensar demasiado nas coisas acaba por ser um handicap do grupo, mas para Salvador foi esta complementaridade que resultou num processo criativo único e surpreendente. A experiência levada ao limite entre todos tem-no deixado encantado. Com formação em jazz, Salvador nunca teve uma banda de garagem.
“Parece que estou numa banda adolescente. Finalmente, tenho a banda de garagem que nunca tive”, orgulha-se. “Às vezes estamos aqui a falar de acordes, e eles não percebem nada do que eu estou a dizer. Depois eles mostram-me um plug-in e riem-se, porque eu nem sabia que o USB não cabia ali. Essa troca é muito gira”, destaca.
A banda e Salvador conheceram-se num trabalho desenvolvido pela produtora Casota, fundada pelos FBAC. O profissionalismo do grupo não passou despercebido e Salvador desafiou-os a participar nos vídeos do seu disco. “No meio falaram-me que tinham uma banda indie. Fui ouvir e gostei. O mesmo profissionalismo que encontrei nos vídeos vi-o na música. A procura de som é uma coisa que na minha música não existe.”
Salvador com autotune
Roberto Caetano revela que o alinhamento para o concerto está praticamente concluído – tem canções em seis línguas -, teatro e cenário. A revelação de tudo só será feita quando subirem ao palco. Todos vão tocar diferentes instrumentos e cantar, apesar de a voz principal ser a de Salvador. “Isto é giro, porque ninguém está agarrado a um só instrumento, algo a que também não estou habituado.”
“A cena engraçada será ter o Salvador com autotune”, brinca Roberto Caetano, ao revelar que há uns dias Salvador estava um bocado preocupado com o aproximar do espectáculo. “O Rui disse-lhe: calma, nós somos mesmo assim, mais perto do momento tudo se vai encaixar. Por isso é que ele já viu a luz.” Acabado de ser pai,
Pedro Marques é o único que faz viagens diárias entre Leiria e Pombal. “Acordo muito cedo e ao início tinha a cabeça um bocadinho a andar à roda. Agora já melhorou porque também me habituei ao ritmo.” Além da música, o grupo ainda teve tempo para jogar à bola. “É importantíssimo esse momento fora daqui.
Replicar este espectáculo noutras cidades? É uma questão de números.”