Proferiu, na semana passada, a sua última aula. O que sentiu?
Foi um momento que considero importante e simbólico na medida em que assinala um percurso de 34 anos de docência e de 33 anos no Politécnico de Leiria.
De todos os cargos e funções que desempenhou, o que mais o preencheu?
Há dois marcos importantes, no Politécnico de Leiria e no ensino superior português. Um foi a implementação dos programas de qualificação do corpo docente, que se revelou um momento de viragem no instituto. Num espaço de tempo muito curto deu-se um grande salto qualitativo. Sinto-me muito grato pelo corpo docente ter acreditado que isso era possível, mesmo à custa de enorme sacrifício e dedicação. Do meu percurso no Politécnico, o mais importante foi o sucesso destes programas. Com as mesmas pessoas a instituição mudou, em termos de qualidade do ensino e da investigação. O segundo momento marcante foi a reforma do ensino superior, iniciada com a ministra Maria da Graça Carvalho e continuada com o professor Mariano Gago. Destaco a adaptação ao processo de Bolonha, que foi bem sucedida, e a aprovação do estatuto da carreira docente do ensino superior politécnico. Graças à qualificação que adquiriram os professores passaram a ter vínculo à instituição.
O objectivo de ver o Politécnico a conferir o grau de doutoramento não foi alcançado na sua liderança, mas a porta está agora aberta. Por que demorou tanto tempo?
Sempre disse que a possibilidade de conferir o grau de doutor e a transformação em universidade não pode depender de uma simples alteração legislativa. Primeiro, era preciso criar as condições necessárias e adquirir as competências científicas e pedagógicas indispensáveis à outorga daquele grau para exigir essa competência. A qualificação do corpo docente era indispensável. Fizemos o percurso certo. Mas, entre o momento em que se criaram as condições e se conseguiu aprovação [para conferir doutoramentos], decorreu muito tempo, mais do que o necessário.
Que explicação encontra para esse protelar?
Em 1969, os professores Miller Guerra e Sedas Nunes, a propósito da reforma das faculdades de medicina, escreveram um artigo onde concluíam que as universidades eram incapazes de se auto-reformar. Em 1970, quando o professor Veiga Simão tomou posse como ministro da Educação disse o mesmo e acrescentou uma coisa com a qual não concordo: que na altura as universidades só formavam professores do ensino secundário e mal. Em 2006, Mariano Gago, a propósito da reacção das universidades ao projecto de reforma do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior [RJIE], declarou que não se conformava com a mediocridade do ensino superior português.
O que dizer com estas referências?
Os professores do ensino superior são dos grupos profissionais mais conservadores, em particular os das universidades. Na discussão em torno da Lei que veio permitir aos politécnicos conferir o grau de doutor usaram os mesmos argumentos utilizados quando os institutos passaram a ter licenciaturas e mestrados. A aprovação da Lei foi um grande passo, mas vem aí a avaliação e revisão do RJIES. É preciso estar muito atento, porque as mesmas forças irão procurar agora dar passos atrás.
Receia que sejam criados obstáculos aos politécnicos?
Seguramente, a avaliar pelas reacções. Ouçamos as declarações dos peritos na Comissão de Educação e vejamos os pareceres entregues. As pessoas ouvidas do sub-sistema universitário repetiram as mesmas posições que tinham em 1997, quando os institutos passaram a conferir o grau de licenciado, e em 2005, quando passaram a conferir o grau de mestre, como se nada se tivesse passado ao longo deste tempo. Há até um parecer de 1983. Um dos critérios para concessão do grau de doutor é que os centros de investigação tenham avaliação de excelente. O grau de exigência deve corresponder ao nível do grau que se confere. Os institutos politécnicos que tenham condições para conferir doutoramento devem poder fazê-lo. Cabe à A3ES [Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior] fazer a avaliação da proposta de criação do curso e acreditá-lo. As condições devem ser exigentes, objectivas e iguais para todos, universidades e politécnicos. Ou seja, temos de saber o que é preciso fazer para poder conferir o grau. Se não temos algumas das condições, só temos de as reunir.
O Politécnico de Leiria já reúne condições para tal?
Tem dois centros de investigação avaliados como excelentes. Face aos requisitos actuais, tem competência para, autonomamente, conferir o grau de doutor em, pelo menos, duas áreas. Há dois ou três institutos que já reúnem condições, mas não podem bastar-se da publicação da Lei. Devem fazer o mesmo percurso que fizemos quando procedemos à qualificação do corpo docente.
Em que áreas?
Na investigação produzida pelo seu corpo docente, que tem de aumentar em quantidade e em qualidade. Para isso, é preciso criar condições. É importante que os institutos se aproximem das condições que os docentes universitários dispõem para fazer investigação. Nas universidades, de seis em seis anos, as pessoas têm direito a um ano de licença sabática para investigação e a sua carga lectiva varia entre seis e nove horas. No ensino politécnico varia entre nove a 12 horas, mas quase todos têm o máximo e, até hoje, não vi nenhuma licença sabática concedida. Pode alegar-se que não há dinheiro. Enquanto exerci funções não houve nada que fosse verdadeiramente importante que ficasse por fazer por falta de dinheiro. É uma questão de prioridades. Há medidas de gestão que podem dar tempo às pessoas.
Pode exemplificar?
Existem unidades curriculares que se repetem em vários cursos. Se distribuirmos o serviço docente dentro das suas áreas científicas de especialização e se, em vez de lhe darmos quatro, lhe atribuirmos uma ou duas unidades curriculares, o docente demorará menos tempo a preparar as mesmas 12 horas de aulas. Sobra-lhe tempo para a investigação. É uma medida que não custa dinheiro. Acho absolutamente iníquo querer que as pessoas incrementem a sua investigação para lá do seu próprio horário, à custa do seu descanso, porque quem decide se dispensa de fazer o seu trabalho de estabelecer prioridades. O grande desafio que se coloca ao ensino Politécnico é o de criar as condições para que os professores possam investigar e que o façam com prazer.
Vê na actual liderança do Politécnico de Leiria sensibilidade para dar prioridade a esta área?
A minha experiência mostrou-me que o primeiro ano e meio a dois anos é um período difícil. É o tempo de conhecermos mais a fundo o funcionamento da instituição, de criarmos relações com os nossos interlocutores e de nos inserirmos na dinâmica do próprio sub- -sistema. Pelo programa eleitoral, parece que a investigação é uma prioridade. É importante – ainda não é tarde – que percebamos como é que essa prioridade se vai concretizar. Ou seja, que condições serão criadas para os docentes continuarem a sua actividade lectiva, reforçando a investigação, sem que sejam penalizados na sua avaliação e progressão na carreira. Até porque, para ser bom professor, é necessário investigar permanentemente.
Ainda faz sentido a velha reivindicação da região de transformar o Politécnico em universidade?
Continuo a defender isso. Deve diferenciar-se o que é diferente, em termos de qualidade científica e pedagógica. Nem todos os institutos politécnicos têm de passar a universidades politécnicas. Devem passar aqueles que reúnam as condições para isso e no momento em que as reunirem e as tiverem consolidadas. O Politécnico de Leiria já reúne essas condições? Face à legislação actual, já. O Politécnico de Leiria tem todas as condições para conferir os graus de licenciado, mestre e, em duas áreas e sozinho, o de doutor.
Em que áreas?
Ao nível do Cetemares [Centro de I&D, Formação e Divulgação do Conhecimento Marítimo] e do CDRsp [Centro para o Desenvolvimento Rápido e Sustentado de Produto] e até da Electrotecnia. Devem ser definidos, de forma muito clara, os requisitos para passar de instituto politécnico a universidade. O de Leiria deve manter, em todos os graus de ensino, a matriz da sua formação e passar a universidade politécnica.
Que mudanças considera mais prementes fazer no ensino superior?
O período que vivemos, com as dificuldades das famílias devido ao aumento do custo de vida, é propício a que se faça essa reflexão. A reforma do ensino superior tem de se centrar nos estudantes. Ninguém tem dúvidas que vai haver mais jovens a interromper os estudos por razões de económicas. As residências de estudantes não se fazem de um dia para o outro. Pois não, mesmo havendo dinheiro. Temos de conseguir chegar aos alunos que não se podem deslocar para um sítio onde um quarto custa 400, 500 ou 600 euros. Não percebo por que se deitou fora a experiência que se ganhou durante a pandemia no ensino à distância. Passei essa fase em Macau. Estávamos em isolamento total, mas a percepção que tenho é que a qualidade do ensino que ministrámos não foi inferior à qualidade do ensino presencial. Perde-se o contacto directo, mas não se perde o contacto com o estudante. Na Faculdade de Direito de Lisboa, cruzávamos-nos com os professores, mas eles iam de cabeça bem erguida e nós de cabeça baixa. A acessibilidade que tínhamos aos professores era zero.
O Politécnico de Leiria dispõe de uma unidade de ensino à distância.
Exacto. Nesta área está especialmente apetrechado para assegurar aos alunos que, comprovadamente, não se possam deslocar para o ensino presencial, que o façam à distância, criando depois pequenos blocos de uma semana para o contacto presencial, que pode ser nas interrupções lectivas, aproveitando espaços vagos nas residências. Pode não ser fácil, mas não é inviável. Tivemos dois anos e meio de ensino à distância, em que se conseguiu proporcionar formação com qualidade. Quem tem responsabilidades que tome medidas.