Venceu o Global Teacher Prize Portugal. Surpreendida?
Sim. Quando se faz o que se gosta, não se está à espera de reconhecimento. O reconhecimento é ver o sucesso dos miúdos, a confiança que os pais têm no nosso trabalho e dos colegas. Não estava à espera que as pessoas achassem que o que eu faço no meu dia-a-dia era digno de um prémio.
Que qualidades é que a distinguem?
Um dos organizadores das Mentes Empreendedoras disse que sou uma empreendedora de práticas. Como sou muito assertiva, levo as pessoas também a fazer. Não me limito só a trabalhar com os alunos, mas tento que as dinâmicas sejam diferentes, na maneira de encarar os miúdos quer tenham alguma problemática cognitiva quer tenham problemas sociais e emocionais, e existem muitos. Sou realmente muito assertiva. Mas faço-o de uma forma natural.
O que é que vai fazer com o prémio de 30 mil euros?
Uma das vertentes é hipoterapia, que já andava a tentar arranjar um patrocínio. Consigo projectos através de parcerias. Muitas pessoas acreditam no meu trabalho e até o fazem pro bono, porque acham que estas crianças precisam realmente de outro tipo de intervenção e de respostas. Outro projecto é criar um open space de trabalho dinâmico, estruturado, com pedagogias diferenciadas, onde tenho um estúdio com tudo montado, mas depois fechando os armários é uma sala de aula. Cada vez temos de capacitar mais os miúdos para serem independentes. Se vou pôr um miúdo com pouca independência em qualquer emprego protegido, o que é que ele faz? Nada. É preciso desenvolver-lhe as ferramentas, para ser minimamente orientado. Apesar da maioria poder ir para o emprego protegido, têm de ser autónomos. Criei esta sala [dedicada ao ensino especial] que não existia. Na brincadeira, até costumo dizer que sou uma fazedora de espaços: por todos os lados onde passei deixei espaços feitos à minha medida. A escola não estava habituada a ter miúdos com algumas patologias, autismos graves, trissomia 21, problemas cognitivos, porque estavam no centro escolar, na sala de multideficiência. Comigo não é assim. Se os meninos são do 5.º ano têm de estar com os colegas de 5.º ano, mesmo que seja por pouco tempo, porque não aguentam estar numa aula inteira. Fiz reuniões com os pais, no sentido de me ajudarem a tornar os miúdos o mais autónomos possíveis. Tudo isto é um trabalho diário, muito assertivo, às vezes com um passinho para a frente e muitos para trás. Mas é muito prazeroso ver miúdos que não faziam praticamente nada e já vão às compras com os pais. Um dos objectivos deste ano é pô-los a andar de bicicleta, para estarem mais próximo dos pares. Os miúdos têm de crescer com os pares. É extremamente enriquecedor para os outros colegas estarem com estes miúdos. Sinto-me grata por estar a contribuir para os tornar melhores cidadãos. Isto é cidadania activa em ação. Muitas vezes são os outros meninos que tiram mais benefício de conviverem com os colegas com estas problemáticas e limitações. Os outros reflectem sobre as suas próprias fragilidades e reconhecem competências aos colegas. É em pequeninas coisas, de uma forma natural, que os miúdos vão percebendo que os seus pares também têm potencialidades. A melhor forma de conseguirmos a inclusão, a aceitação e o respeito é pelo exemplo.
A inclusão e a integração nas escolas existe realmente?
Estou convicta que existe, mas não é aquela que gostaria. Se a liderança da escola, o corpo docente e os funcionários acreditam que estes alunos têm de cá estar, há inclusão, pois arranjaremos os recursos materiais para trabalhar. A mudança não se faz por decreto, faz-se cá dentro. Agora, o professor e a liderança da escola têm de considerar este aluno como outro qualquer. A DGEsTE [Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares] não nos dá os recursos humanos. Os miúdos têm de ser levados à turma, mas têm de ter acompanhamento e não há recursos humanos. Eles dizem que estas crianças devem estar em sala de aula até a tempo inteiro – e isto só para quem nunca trabalhou com estes meninos -, mas se não passarem mais de 60% da carga horária semanal já não dá direito a inibir turma (mais pequena). Como é que conseguimos ter um autista numa turma de 28? Por mais vontade que eu tenha e até os colegas de o aceitarem? Quando falamos da inclusão, parte muito de recursos, sobretudo humanos. Tenho consciência que estes miúdos absorvem uma quantidade muito grande da carga horária, mas eles não estão nas escolas especiais como em muitos países. Portanto, ou a escola pública é mais subsidiada ou não podemos dizer que temos inclusão, só porque temos um decreto.
Além da falta de professores de educação especial, também há poucos psicólogos, terapeutas da fala… Como é que conseguem ultrapassar todas essas lacunas?
Esses recursos e apoios especializados são fundamentais para estes miúdos. A escola pública tem uma parceria com os Centros de Recursos para a Inclusão, só que a verba é muito escassa e o terapeuta não está a tempo inteiro. Temos de ajudar o miúdo diariamente com o psicólogo, a terapia da fala, a terapia ocupacional, a psicomotricidade. Há muita falta de recursos. A escola devia poder ter esses técnicos, tal como temos os psicólogos do SPO [serviço de psicologia e orientação].
As escolas deviam poder contratar directamente os técnicos?
Sim. Com a pandemia conseguimos alguns técnicos. Por exemplo, não tinha uma terapeuta da fala residente. Com o plano de desenvolvimento pessoal, social e comunitário, conseguimos ter uma terapeuta da fala e uma educadora social a tempo inteiro. É isto que as escolas têm de ter. O trabalho que os técnicos fazem é louvável, mas têm de ser da casa. Com o tempo, poderíamos até rentabilizar esses recursos, porque a formação que se dá a um professor vai também modificar as suas práticas e, com isso, melhorar os resultados finais.
O que tem aprendido com estes alunos?
Tenho aprendido imensa coisa, como a relativizar. Sou muito optimista e acredito que todos temos direito a ter um espaço e a sermos tratados com dignidade. E depois há pequeninos avanços, que podem ser quase imperceptíveis e que me dão uma satisfação incrível: ver o brilho nos olhos de um aluno que praticamente não comunica, mas que conhece um cheiro ou um espaço. Esta mística de descobrir a forma de ensinar algo que resulte é óptimo. A pessoa tem de ser vista de uma forma holística. Não é o aluno que tenho ali, mas o Manuel ou a Rita. É a pessoa. Muitas vezes, o que a escola tem de menos positivo é ver só o aluno. Não somos o número um da turma tal. Somos o Manuel, a Joana, que tem um passado e uma família e aquilo que muitas vezes exijo a um, não posso exigir ao outro. A escola esquece isso. Não somos padronizados. Cada um tem a sua história e temos de os tornar mais empreendedores do seu próprio conhecimento, mais fazedores da sua aprendizagem, mais envolvidos.
Como é trabalhar numa escola fora de um centro urbano?
Aqui tenho muito poucos recursos. Quero pôr os meus miúdos em PIT – um plano de intervenção já para uma pré-profissionalização e não tenho indústria, o comércio é pouco, não tenho fábricas. Onde é que os ponho? Nas cidades tenho mais resposta. Cada vez mais a escola tem de estar plenamente aberta à comunidade. Todos precisamos de todos. O trabalho tem de começar o mais cedo possível para os integrar na comunidade. Não têm de estar fechados em casa e dependentes de subsídios. Os subsídios servem para ajudar, mas não para viver só com aquilo. Hoje em dia estamos só a dar canas, mas não estamos a ensinar estas famílias a gerirem-se.
Os alunos com maiores dificuldades têm competências que os permite trabalhar?
Tenho meninos que terão de sair para um ambiente mais protegido. Mas outros conseguirão emprego. Os cursos profissionais também nos vieram ajudar nesta temática. Tem é de haver outros recursos. Um autista ou um miúdo com uma debilidade mental não aguenta 40 e tal horas semanais. Mas se conseguirmos capacitá-lo, ele pode ser óptimo num hotel, num lar, na parte da engomadoria, no refeitório, num museu, numa secretaria… há tanta coisa. Mas temos de os treinar até para descobrirmos o que é que conseguem fazer, e não é fechado na escola. Têm de aprender fora do seu ambiente. Por isso, temos de nos munir o mais possível das parcerias com a comunidade, de forma a torná-los cidadãos activos, aprenderem a respeitar e a exigirem ser respeitados. Isto mudaria um bocadinho a nossa sociedade.
No vídeo de apresentação do prémio referiu que o seu trabalho extravasa as portas da escola e que tem uma missão. O que salta os muros da escola e que missão é essa?
Estava a referir-me às muitas parcerias que faço quer com a associação dos comerciantes, com as câmaras, com as juntas de freguesia, com todos quantos for possível. Sou muito pedinchona, mas não para mim. Consegue-se muito porque se acredita. Não é só dizer que preciso disto. É: preciso disto porque é extremamente importante. Um miúdo que tem um comprometimento cognitivo não vai perceber o que é o Paleolítico ou a Revolução Industrial. Mas posso ensinar-lhe o que é uma fábrica e para que serve. Eles podem depois apresentar esse trabalho em turma. Há toda uma mentalidade que a escola tem de se abrir à comunidade. Faz-me imensa confusão que o aluno saiba a Era Industrial, mas não sabe como é que nasceu a sua vila. Era muito importante também aprimorarmos o conhecimento dos alunos pelas nossas raízes. Perguntamos aos alunos universitários e não sabem quem é o ministro da Educação nem o presidente da Câmara onde vivem. Isto é muito grave. Os meus meninos sabem como é que se chama o director desta escola. A aprendizagem tem de ser muito tocar e sentir. Os miúdos não são tão passivos como nós a receber informação. Têm de ser os fazedores da sua aprendizagem, caso contrário dispersam. Temos de aproveitar aquela dinâmica para os pôr activos. Na disciplina de cidadania podemos fazer projectos para alterar salas ou ajudar pessoas da comunidade. Eles precisam de muitas respostas, que não vêm nos livros, e de ver o resultado. Outra coisa, muitas vezes, os miúdos com mais dificuldades a nível do comportamento são aqueles que interagem de coração aberto com estes meninos. Essa surpresa até faz com que os professores comecem a conhecer a história dos alunos. Estes miúdos que, por vezes, tiveram uma vida complicada são muito mais sensíveis. Por isso é que defendo que os miúdos devem ir à sala. Todo o pai fica feliz se o filho for convidado e convidar para a sua festa de anos. Emociona-me o facto de a criança ter amigos e ser convidada para ir a uma festa. Nem imaginam o prazer que me dá. Aí cumpri um bocadinho da minha missão, de pô-lo integrado e feliz. É sentir: eu existo, também sou uma criança. Tenho direito a ser feliz. Esta humanidade faz falta na escola. Assim conseguimos uma sociedade mais justa, mais equitativa e mais feliz. Todos precisávamos de olhar um bocadinho para fora de nós. Para trabalhar com estes miúdos é preciso ter uma resiliência muito grande e conseguir trabalhar com a frustração, porque damos tudo, e os progressos são muito pequeninos.
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