Acaba de ser distinguida com uma das Medalhas de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência. O que representa para si este prémio?
Fiquei muito feliz. É um prémio que tem muito impacto, pelo valor e significado, no sentido de dar visibilidade e destacar o papel da mulher na investigação e na ciência.
Ainda faz sentido um prémio só para mulheres?
Faz. A desigualdade entre homens e mulheres ainda persiste, embora a uma escala um pouco diferente do que acontecia há uns anos. As mulheres já estão em maioria em cursos de licenciatura e de mestrado e, até, em alguns doutoramentos. A desigualdade coloca-se, sobretudo, em posições de liderança, onde há mais homens. Continua a haver a ideia de que a mulher não é tão decidida ou tão determinada e que é mais emotiva. E, se até tem mais ambição, muitas vezes, é vista de uma forma menos positiva. Gostava que chegasse o dia em que estes prémios deixassem de existir, porque significava que tínhamos alcançado a igualdade entre homem e mulher. Na ciência ainda não estamos lá.
Foi premiada pela investigação que tem feito em torno do síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS). De que patologia estamos a falar?
É mais conhecida como apneia do sono. É uma perturbação do sono que se caracteriza essencialmente pela ocorrência de episódios de interrupção das vias respiratórias durante o sono. Os sintomas variam muito de pessoa para pessoa. Umas ressonam mais, outras menos, há quem tenha sonolência excessiva durante o dia, outros sentem dor de cabeça durante as primeiras horas após acordar. A longo prazo, a SAOS está associada ao desenvolvimento de outras patologias, como hipertensão, doenças cardiovasculares e degenerativas, obesidade, depressão ou doenças metabólicas, como a diabetes. Ainda não é claro o que leva uma pessoa com apneia do sono a desenvolver essas doenças, mas já existe uma associação muito evidente. É uma das perturbações do sono mais comuns a nível mundial.
Qual é a prevalência?
As estimativas indicam haver cerca de 936 milhões de adultos com apneia obstrutiva do sono. Este número só se refere aos casos diagnosticados. O problema está aqui, já que entre 80 a 90% dos casos não estarão diagnosticados.
A que se deve esse sub-diagnóstico?
O diagnóstico da apneia do sono requer que o doente fale sobre o seu sono. A questão é que a pessoa acha que ressonar é normal, pelo que, não vai comentar. É uma percepção errada. Ressonar não é normal. Por outro lado, o doente só se apercebe se tiver um parceiro que o alerte e que já o tenha ouvido a ter episódios que parecem de sufoco enquanto dorme. O doente não tem percepção que ressona nem que tem esses episódios. É necessário que haja uma valorização do sono. Está muito normalizada a ideia de que dormir mal é normal, que é um mal os nossos dias. Se precisamos de mais tempo, é ao sono que ‘roubamos’ essas horas. Há na sociedade actual uma desvalorização do sono. Por outro lado, não existe a especialidade de medicina do sono.
Os médicos de família estão suficientemente sensibilizados para esta questão?
Infelizmente, não estão muito. Na maior parte das vezes, o sono não vem à conversa nas consultas. Mas há outros factores que contribuem para o sub-diagnóstico. Um estudo do sono implica que o doente passe uma noite num hospital ou numa numa clínica de medicina do sono ou que leve o equipamento para casa. E os tempos de espera para estes estudos andam próximos dos dois anos. São estudos que têm custos significativos para o Estado e que são incómodos para o doente.
A que perguntas é que a sua investigação vai procurar responder?
Uma das nossas principais questões é tentar perceber de que forma a SAOS promove o desenvolvimento de outras doenças. Tem de haver um mecanismo comum a todas essas doenças. A apneia do sono não tratada é uma bomba-relógio. Com o avançar da idade há uma maior predisposição para desenvolver doenças cardiovasculares, metabólicas, neuro-degenerativas, depressão ou cancro. Os doentes com apneia do sono parecem ter essa predisposição mais cedo. Queremos perceber se a apneia do sono promove ou acelera o envelhecimento. Será que, por si, a apneia do sono é capaz de induzir os mecanismos associados ao envelhecimento? Queremos também contribuir para uma melhoria no diagnóstico.
De que forma?
Aqui, o nosso objectivo passa por tentar encontrar e identificar indicadores ou potenciais bio-marcadores da apneia do sono no sangue. Isso permitiria que o diagnóstico fosse feito através de uma análise ao sangue. Temos de encontrar indicadores muito específicos da doença e perceber se são comuns aos diferentes perfis de doentes. A apneia do sono é uma a doença bastante heterogénea. Há uns anos, associava-se a doença a pessoas mais velhas, com excesso de peso, e mais aos homens. Hoje, sabemos que a apneia do sono afecta todas as idades, desde bebés até pessoas mais velhas, homens e mulheres. O objectivo é conseguirmos chegar aos vários sub-grupos de doentes através de uma eventual análise de sangue.
Com o vosso trabalho esperam também contribuir para a sensibilização para a importância do sono?
Sem dúvida. Isso passa por mostrar que há uma perturbação do sono capaz de promover ou acelerar o envelhecimento e levar ao desenvolvimento de várias doenças, ao aumento de acidentes de viação e de trabalho, à perda de produtividade e, até, ao maior risco de complicações pós-operatórias. É preciso chamar também a atenção para o impacto económico de uma doença destas não tratada. O facto de termos de tratar todas as doenças associadas, que são produto de uma apneia do sono não tratada, é muito mais dispendioso do que tratar simplesmente a apneia. Temos de reforçar a ideia de que a doença existe, para que se possa diagnosticar atempadamente e iniciar o tratamento mais cedo.
É uma doença tratável?
Existem vários tipos de tratamento. O mais comum é o uso de uma máscara durante o sono, que emite uma pressão positiva continuada. Esta solução evita a obstrução das vias respiratórias, quando utilizada. A questão é que não temos forma de saber há quanto tempo é que um doente tem apneia do sono. Uma das componentes do meu projecto de doutoramento passava por tentar perceber se este tratamento é capaz de reverter as alterações provocadas pela apneia do sono. Não é ainda muito claro que o tratamento seja capaz de fazer reverter todas as alterações.
Como é que lhe surgiu interesse por esta área de estudo?
Sempre gostei muito da área do sono. Acho fascinante, principalmente, porque há muita coisa que ainda não sabemos. Também é uma área difícil de estudar precisamente por não termos muitas ferramentas para estudar o sono. Gostava de perceber melhor o que acontece nas diferentes fases de sono.
Dorme bem?
Muito bem. Nem sempre o número de horas que devia. Muitos vezes, sacrifico horas de sono para atingir todos os deadlines a que me proponho, mas, assim que me deito, é tiro e queda. Fez parte do doutoramento no EUA, mas acabou por regressar.
O que a fez voltar e radicar-se em Portugal?
Talvez aquela ideia romântica de poder contribuir para o avanço da ciência no meu País. Não é por me sentir mais confortável – acho que tenho a facilidade de estar em qualquer lugar e de não me prender demasiado, mas por poder contribuir para o avanço da ciência em Portugal.
Já é apetecível fazer ciência em Portugal?
Começa a ser. Já é possível ter contrato de investigação. Eu já tenho. Há dez anos, isso era raro. De facto, começa a ser mais apetecível fazer ciência em Portugal, mas ainda temos um longo percurso pela frente. A investigação não é uma vida muito fácil. É preciso gostar muito. Exige muitas horas de trabalho fora do horário estipulado. Não tenho de o fazer, mas se não o fizer não consigo ser competitiva. Há muito esta pressão de fazer o máximo, de forma a conseguir seguir o caminho traçado e obter a progressão e a valorização da carreia que se pretende.
Outra dificuldade de trabalhar na ciência é que o resultado não é imediato.
Os projectos de investigação são muito longos. Demoram anos e anos, porque há muitas variáveis a ter em conta e é preciso abarcar muitos doentes para poder encontrar respostas que possam ser validadas. E é difícil a sociedade perceber isso. Depois, os projectos exigem financiamento e nem sempre se consegue ter, no imediato, a verba necessária. Vai-se adquirindo financiamento à medida que se vão gerando resultados. Por isso, muitas vezes, os projectos não avançam à velocidade que gostaríamos.
Em alguns países, como os EUA, muito do financiamento da ciência é feito por mecenas e empresas. Em Portugal, ainda não há muito essa tradição. Porquê?
Porque não existe ainda muita cultura científica. Começa a haver mais interesse pela ciência. A Covid-19 veio ajudar a valorizar o papel do investigador, que naquela altura foi crucial para conseguirmos lidar com a epidemia. Mas, apesar dessa melhoria, a sociedade não está ainda muito sensibilizada para importância da ciência e continua a ser difícil obter financiamento por essa via.
Em que momento que percebeu que queria ser cientista?
Foi já no final do secundário. O currículo do 12.º da disciplina de Biologia tinha uma parte dedicada à genética, da qual gostei muito. Comecei a achar que talvez pudesse seguir essa área. Falei com a minha professora que me tentou orientar um pouco, mostrando- -me o que havia em Portugal. Nesse ano, tínhamos também um módulo relacionado com as neuro-ciências do qual também gostei bastante. Não fazia ideia do que era um centro de neuro-ciências, biologia celular ou, até mesmo, investigação. Por conselho da minha professora falei com um investigadora deste centro [Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra]. Acabei por escolher o curso Genética da UTAD [Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro], em Vila Real.
Rendeu-se à ciência nas aulas de biologia