Já são quase 70 os anos em que João Freire se dedica à esgrima. Com algumas paragens, é certo, fruto de uma vida profissional que lhe ocupava muito tempo, mas agora já não se imagina sem aquele treino de hora e meia por semana, passado todas as quintas-feiras na Sala de Armas do Estádio Municipal Dr. Magalhães Pessoa, em Leiria.
Uma vez por semana, João Freire sai de casa, a três quilómetros da cidade de Ourém, acompanhado pela esposa, Maria da Graça, para marcar presença no treino de esgrima que permite o “esvaziar da agressividade natural que nós temos”.
Conta já 81 anos de vida, mas o desporto continua a ser parte importante para garantir o bem-estar físico e mental.
A esgrima acompanhou toda a vida de João Freire. “Em minha casa, em Lisboa, havia umas armas de esgrima desportiva. Eu, em miúdo, brincava com o meu irmão mais velho, mesmo sem máscaras”, recordou o sociólogo de profissão.
Quando ingressou no liceu, na Escola Militar de Lisboa, percebeu que a esgrima era uma modalidade obrigatória, e deu os primeiros passos nas competições. “Ainda no Colégio Militar, comecei a participar nas primeiras provas. Estávamos em 1960 e eu, nesse ano, fui ao Campeonato Nacional de Sabre, homens, e fiquei em 5.º lugar, o que foi uma grande surpresa!”, contou o atleta, momentos antes de iniciar o treino.
Por pouco que João Freire não foi aos Jogos Olímpicos de Roma nesse ano, contudo, aquele resultado deixou-o “entusiasmado”.
Depois do Colégio Militar, manteve os treinos no Centro Desportivo Universitário de Lisboa e, até 1967, participou em várias provas, tendo sido campeão nacional individual em 1965. Foi sozinho às Universíadas, os jogos mundiais universitários, onde conheceu “os melhores esgrimistas do mundo”.
A carreira profissional começou na Escola Naval, para ser Oficial da Marinha, e os seus superiores sempre permitiram conjugar as funções militares com o desporto. “Fui duas vezes para além da Cortina de Ferro,às Universíadas, uma vez à Bulgária e outra à Hungria. Que ninguém ia, a não ser no futebol, o Benfica e o Eusébio”, gracejou.
Os Jogos Olímpicos sempre foram uma ambição, mas por três vezes ficou impossibilitado de ir. Depois dos Jogos de Roma, a competição de 1964 foi em Tóquio, mas Portugal não levou nenhum atleta de esgrima. Quatro anos depois, João Freire teria resultados para ir, mas a guerra colonial já decorria e o atleta estava a bordo de um navio militar, em África. “Como eu dizia, estava à beira da guerra”, detalhou.
Foi nessa altura que desertou e exilou-se em França, onde começou a estudar ciências sociais e políticas, casou-se e teve o primeiro filho. Nessa altura, a vida profissional já ocupava demasiado tempo e a esgrima ficou para segundo plano. Apesar disso, a paixão pela modalidade não foi esquecida.
Já de regresso a Portugal, em1976, foi professor universitário no ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa) durante 30 anos, sendo agora professor emérito da instituição.
Voltou à esgrima nos anos 90
Nos anos 90 resolveu procurar, já a viver em Ourém, terra natal do avô paterno, alguma escola ou associação que tivesse esgrima. Foi até Tomar, recorda, mas “não havia nada”. Continuou, por isso, a treinar em Lisboa, mantendo a deslocação até à capital todas as semanas.
Os anos foram passando e só em Setembro do ano passado é que soube que o Bairro dos Anjos promovia esta modalidade. “Tem graça, porque o meu bairro de origem em Lisboa, onde nasci, era o Bairro dos Anjos”, brincou o atleta, com a sensação de que o encontro com o clube estava quase predestinado.
“A cabeça nunca parou, mas esta actividade física, que eu me sinto capaz ainda de fazer razoavelmente bem, tenho-a no corpo. Como dizíamos em novos, a lâmina faz parte do corpo”.
Ficou surpreendido, no entanto, com a quantidade de jovens que, no Bairro dos Anjos, já se dedicam a este desporto. “Estes adolescentes surpreenderam- me. Primeiro, pela quantidade, depois pela qualidade. Já ganho a uns, mas perco com muitos outros. Acho que eles também acham graça ter aqui um avôzinho, não a dar aulas, mas a competir”, disse entre risos, com a boa disposição que já lhe é característica.
Mesmo depois de tantos anos dedicado à esgrima, a gentileza e boa educação associadas à modalidade ainda o cativam.
“Quando sou eu que sinto ser tocado, independentemente do aparelho eléctrico que agora tira as dúvidas, por reflexo digo ‘Eu, eu tocado’. Ou seja, aplico aquela frase do toché, em francês, que no meu tempo aplicava-se, por boa educação. Aplicava-se a recebermos o toque e acusarmos o toque do outro, não de reivindicarmos ‘Eu toquei no outro’”.
Com a certeza de que esta hora e meia por semana lhe fazem bem à saúde, João Freire garante: “Enquanto me sentir bem, vou continuar”.