O projecto Cá dentro, Lá fora / Lá dentro, Cá fora fez viajar dezenas de diários gráficos, com o registo de emoções, sentimentos, mensagens encorajadoras e conselhos. Estudantes da Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo e Escola Superior de Ciências Sociais (ESECS) do Politécnico de Leiria, e reclusos do Estabelecimento Prisional de Leiria Jovens, com idades entre os 17 e os 23 anos, utilizaram frases, desenhos, colagens ou poemas e rimas musicais para conversarem entre si, através de diários gráficos.
Sob pseudónimos, deram conselhos sem fazerem ideia de quem estava do outro lado, qual a idade e o género. Perceberam que as dúvidas e as preocupações de uns são as mesmas de outros, independentemente de estarem impedidos de sair ou de terem a liberdade total.
“Esta foi uma maneira de mostrar às pessoas que estão lá fora que somos todos iguais. Não é por termos cometido um erro que somos diferentes dos outros jovens. Mostrámos que alguns, aqui, também têm talento”, afirma José Fernandes.
Durante quatro meses, os diários gráficos foram um refúgio, mas também uma forma de libertarem o que sentem. “Há pessoas que estão lá fora e estão piores que nós. Deu para perceber que não é só cá dentro que há problemas. A vida lá fora também é difícil”, constata Miguel Gonçalves, outro dos reclusos.
É um dos artistas da prisão-escola e passou para o papel alguns versos de músicas da sua autoria, que transmitiam as dificuldades por que já passou, não muito diferentes do que enfrentam outros jovens da sua idade. “Não há motivo para baixar a cabeça e desistir.”
Guilherme Ferreira utilizou o diário para “desanuviar e aliviar o stress” e António Muambuco até começou a escrever cartas à família.
Palavras motivacionais eram uma das principais mensagens que faziam questão de passar, “dando forças para quem estava lá fora a passar por um momento difícil”, assume Gabriel Ramos, que confidencia que ganhou o gosto pela escrita.
“Ensinámos a não baixar a cabeça aos problemas, independentemente das circunstâncias. Por mais que pareça difícil, dá sempre para superar e há sempre alguém pior que nós”, referem ainda.
Pedro Correia e Ricardo Henriques são finalistas de Educação Social na ESECS e orgulham-se de terem feito parte do projecto. “Muitas vezes havia mesmo troca de correspondência, com respostas a perguntas e conselhos. Representávamos ou escrevíamos coisas do nosso dia-a-dia. Houve quem desenhasse uma cozinha ou uma cela”, adianta Pedro Correia.
Cada semana era uma experiência diferente para Ricardo Henriques, que “despejava” o que sentia. “Só vemos o lado mau, mas são pessoas como outras quaisquer: com emoções, com desejos e com sonhos. Podem ter cometido um crime, mas isso não os define, nem as suas vidas.”
“Escreviam sobre a família e desenhavam abraços. Querem carinho como nós. Conseguimos reflectir sobre a nossa própria vida e usar isso para sermos melhores pessoas no futuro”, acrescenta Ricardo Henriques.
Para Pedro Correia, o “ponto mais forte deste projecto é a componente sócio-pedagógica”. Quando se encontraram com os reclusos na prisão, no final do projecto, perceberam que os diários era um refúgio para eles. “O interessante é que da nossa parte foi exactamente a mesma coisa. Estamos separados, mas estamos muito próximos.”
Ângelo Teixeira e Andreia Pinheiro foram dois dos alunos do 12.º ano da turma de Artes Visuais que trocaram correspondência com os outros jovens através do desenho. Não tinham a liberdade dos outros, pois a sua participação tinha um tema dado pelo professor. Tiveram de dar azo à criatividade para desenhar janelas.
“No início estava um pouco triste, porque me empenhava muito nos meus trabalhos e os deles eram muito pobrezinhos. Mas eles foram melhorando. Às vezes chegavam-nos poemas ou desenhos de grades”, conta Andreia Pinheiro.
Para Ângelo Teixeira, este foi “um projecto interessante”, porque ajudou os reclusos a ver o que se passava fora da prisão. “É conversar com eles de maneira diferente. Alguns já enviavam mensagens com emojis.”
Francisco Marques, docente da Escola Secundária Francisco Rodrigues Lobo, defendeu que este projecto foi “o dar um pouco de si a terceiros”. “É treinar para o desprendimento, sair da sua bolha, já que quando forem artistas a sua arte não fica para si.”
Com a mentoria de Filipa Rodrigues, docente da ESECS, este projecto-piloto surgiu no âmbito do programa Link me up – 1000 ideias, depois de um grupo liderado pela docente da ESECS desenvolver um projecto ligado a mulheres reclusas. Com todo o conhecimento adquirido, Filipa Rodrigues aventurou-se num novo desafio, agora com jovens reclusos.
“Os nossos objectivos eram sempre a questão da partilha, de estabelecer uma relação com alguém que está agora recluso, mas que, mais tarde ou mais cedo, integrará a sociedade quando acabar de cumprir a pena”, explica a docente, ao salientar a relação de proximidade que se foi criando, mesmo que incógnita.
Vera Piedade, animadora educativa sócio-cultural, garante que os jovens foram “muito participativos e empenhados”.
“Havia necessidade de escrever e de passar para o papel as emoções e os desabafos. Há um diário que está muito engraçado, em que uma jovem escreveu um desabafo e quase todos queriam responder. Um dos nossos escreveu: ‘lembra-te sempre que a vida é bela e ainda tens muito para viver’. Tive alguns jovens que vinham muito inquietos e depois diziam que iam de outra forma para a cela. Ajudava-os a ficar mais tranquilos.”
Fátima Fachada, guarda prisional, acompanhou os reclusos ao longo do projecto e constata que os jovens perceberam que “os problemas são comuns” a todos. “Não é por estarem privados de liberdade que não há tristeza e alegria, que são inerentes à idade. Reparei que muitos jovens aqui sabem desenhar muito bem. Só precisam de uma orientação. Quando se quer o bem vem ao de cima.”