Foi um dos primeiros fotojornalistas portugueses a ir para a fronteira da Hungria, quando a Rússia invadiu a Ucrânia. E a testemunhar o maior êxodo de refugiados na Europa desde a II Guerra Mundial.
A minha primeira ida para a Hungria tem uma marca super importante, porque fui acompanhar a questão social e não propriamente o conflito militar: as pessoas que estavam a fugir da Ucrânia e a entrar em território húngaro, de onde eram encaminhadas para a capital ou para outros países da Europa. Vivia-se um ambiente muito pesado. Eram sobretudo mulheres e crianças, mas, acima de tudo, eram seres humanos que estavam a ser empurrados para fora de casa, por questões que lhes eram alheias. Via um sofrimento enorme, pessoas que tiveram que deixar tudo para trás, desde os bens à família.
Recentemente voltou ao Leste da Europa em trabalho, desta vez já em território ucraniano …
Sim, estive em Kiev, mas não senti um ambiente tão pesado, apesar da destruição e de poder haver um ataque a qualquer momento. É triste, mas parece que as pessoas já estão conformadas e vivem dentro da normalidade possível. Há limitações, mas o ambiente parece o de uma capital europeia. Continuamos a ver trincheiras, check-points e muitos militares, mas as pessoas tentam fazer a sua vida normal.
Apesar dessa aparente normalidade, presumo que encontrou histórias dramáticas…
Há uma história pesadíssima, que tem cheiro a campo de concentração. Os russos tomaram uma aldeia próximo de Kiev e encerraram os 400 habitantes na cave de uma escola, durante 25 ou 26 dias. E só estavam autorizados a sair para retirar os cadáveres. Morreram lá dentro 11 pessoas. Nas paredes, há desenhos de crianças a lápis de cor, e os riscos gravados pelos adultos que iam contabilizando há quantos dias estavam presos.
Por cá, enquanto fotojornalista que segue de perto os incêndios florestais, também já acompanhou situações complicadas. Sendo ambos dramas humanos, para si são diferentes?
Nem são muito diferentes. Primeiro, porque partimos do pressuposto que a maioria dos fogos florestais têm origem em causas naturais, e isso não é verdade. E quando num ano, como o de 2017, em que morreram 114 pessoas num país como o nosso, isso é quase pior que uma guerra. Ver pessoas queimadas e ouvir as histórias de quem perdeu tudo nos incêndios, acho que me chocou mais do que ver desenterrar corpos em Kiev. Talvez pelo efeito da proximidade.
A foto de um desses momentos conquistou o Prémio Rei de Espanha. Além desse, já ganhou mais de uma dezena de prémios, entre eles um do World Press Photo. Quando está a fotografar tem a noção que aquela imagem pode valer uma distinção?
Não. Nem sequer penso nisso. O meu objectivo é que os meus olhos sejam os olhos do leitor. A minha imagem tem que transmitir informação e é por isso que mantenho o estilo clássico, para que quem vê essa imagem não fique com dúvidas.
É isso que o leva a desenvolver outros projectos mais documentais?
Hoje, já não temos onde abrir uma disquete. O digital veio mudar muita coisa. E é importante que o nosso trabalho fique para memória futura, em suporte físico, em película ou em livro. Por exemplo, o livro que fiz sobre a rua direita, em Viseu, daqui a 20 anos, vai permitir recordar a vida, a rotina, os hábitos e os costumes daquela rua.
Ainda fotografa em película?
Sim, com alguma frequência. Durante a pandemia, fotografei muito em analógico, porque, para mim, a película ainda é uma garantia de que a imagem não se vai perder.
Mas foi o digital, no fundo, que o levou a ser também operador de câmara. Como se gere o exercício destas duas funções no terreno e em simultâneo?
Para ser franco, eu também gosto de filmar, porque encaro a câmara como uma máquina fotográfica, mas não é a mesma coisa. E, a nível profissional, a tendência é filmar cada vez mais e fotografar menos.
Foi convidado a participar numa sessão sobre saúde mental no Politécnico de Portalegre. O que tem um fotojornalista a dizer aos estudantes sobre este tema?
Posso partilhar a minha experiência de como os acontecimentos têm ou não influência em mim. Costumo dizer que fazer um casamento ou um funeral é igual, porque o meu trabalho é retratar o momento. Não quero dizer que seja insensível ou indiferente às situações … ainda hoje recordo, por exemplo, a foto que fiz a um homem desesperado, a chorar, com as mãos na cabeça, ao chegar ao local de um acidente de viação onde tinha acabado de morrer a sua mulher e o filho ainda bebé … mas nem pensei duas vezes, porque a minha missão era retratar o momento.
Há fotos que não tirou por sentir que estava a invadir a privacidade ou a explorar os sentimentos de alguém?
Não. Tiro primeiro e penso depois. E o critério é se uma imagem é publicável ou não.
Como encara os fotojornalistas mais novos e como é que os acolhe em contexto de trabalho?
Normalmente, a nível profissional, identifico-me com as pessoas ou não. Se me cruzar com um fotojornalista que me faça lembrar como eu era há 20 anos, dou-lhe tudo o que puder. Levo-o comigo se quiser, empresto equipamento se ele necessitar, partilho contactos, ajudo no que estiver ao meu alcance. Mas se vir uma pessoa que quer ser fotojornalista apenas porque acha que ser fotojornalista é fixe, passo à frente.
E como era o Nuno André Ferreira há 20 anos?
Lembro-me que passava num quiosque, olhava para as capas dos jornais, e via sempre o mesmo nome na assinatura das fotos: Paulo Cunha. E eu queria ser como o Paulo Cunha [fotojornalista de Leiria que tem trabalhado para vários órgãos de comunicação e agências, entre elas a agência Lusa]. E se me perguntar quem é que quero ser hoje, respondo que continuo a querer ser como o Paulo Cunha. Porque ele continua a ser uma referência e está em Leiria, não está em Lisboa, no Porto ou em Londres. Aliás, acho que Leiria é, provavelmente, a capital de distrito com melhores fotojornalistas por metro quadrado.
Apesar de profissionalmente se considerar um fotógrafo mais conservador, tem explorado também o lado conceptual da imagem. Que projecto é esse de ocupação da paisagem?
A ideia surgiu um pouco por acaso, quando eu e a Sofia Xavier queríamos fazer um auto-retrato conjunto, preparámos um espaço na paisagem com duas cadeiras, e a dada altura percebemos que estava ali um conceito interessante de ocupação do espaço… Tentar explorar o impacto que o ser humano provoca na paisagem, que pode ser bom ou pode ser mau.
Já que estamos a falar do conceito de ocupação de espaço, o nosso espaço público tem sido bem ocupado?
Não. Em Leiria, temos ocupações que não fazem sentido, e depois temos ruas ocupadas pelos carros, que deviam ser ocupadas apenas pelas pessoas.
Em que medida a fotografia pode ajudar a melhorar a ocupação do espaço?
A fotografia pode transmitir emoções, pode transmitir conhecimento, entre tantas outras coisas. Se ocuparmos o espaço urbano com essas fotografias, estamos a oferecer tudo isso às pessoas e a contribuir para que usufruam melhor esse mesmo espaço. Aliás, se pudesse, colocava fotografias em rolo na frente do castelo, para que as pessoas as pudessem ver na cidade.
Qual é a fotografia que gostava de ter feito e não fez?
Há uma. A do desmaio do Cavaco Silva, enquanto discursava nas cerimónias do 10 de Junho, na Guarda. Eu estava destacado para acompanhar as celebrações, mas por razões profissionais, tive que me ausentar para fora do País e falhei esse momento.
Muitos conhecem o seu trabalho como fotojornalista, mas, possivelmente, poucos sabem que toca bateria numa banda de heavy metal… que voltou a reunir-se passados alguns anos.
A primeira banda onde toquei chamava-se Kampa, porque morávamos todos próximo do cemitério. Depois, uns saíram, outros entraram e, em 1996, formámos a Dramafall. Agora, mais maduros, juntámo-nos outra vez e estamos a criar temas novos para, quem sabe, voltar aos palcos.