Camada
Quantas camadas de protecção precisas ainda despir até seres livre? Ah, já te sentes livre. Então de que te proteges?
Desenho
Talvez o mundo esteja repleto de anjos maus; anjos que carregam consigo enormes álbuns de fotografias invisíveis; anjos arquivistas. Estamos muito bem, muito felizes da vida, a cantarolar no banho ou a beijar alguém, a comer bolo de chocolate, a tentar adormecer, a cheirar uma flor ou a pensar no que trará o pai natal, a experimentar roupa nova, a desenhar bonecos num guardanapo: e eis-nos surpreendidos por um destes anjos, que nos exibe mesmo à frente dos olhos uma fotografia do seu álbum. E a fotografia representa um qualquer instante banal do nosso passado, um momento esquecido da nossa vida; vemo-nos, reconhecemo-nos. E percebemos, somos forçados a perceber, como a vida é uma simples acumulação de momentos banais, momentos que logo esquecemos, momentos que não conseguimos saborear adequadamente; uma acumulação de fotografias que nem nos demos ao trabalho de arquivar. Desenhos esquecidos num guardanapo.
Ebulição
Dentro de mim permanece a minha liberdade, intensa e caótica. Em ebulição permanente, à procura de uma janela aberta.
Exterior
Talvez cada pessoa com quem nos cruzamos seja uma janela para um universo diferente. E por isso, nunca estamos realmente sozinhos: basta olhar para fora de nós.
Ginástica
Não sei o que mais pesa em mim: se o silêncio, se o vazio, se o riso, se o medo, se o prazer, se a angústia, se o sonho, se a indecisão, se a esperança, se a saudade. Sinto-me uma acumulação de pesos, que oscilam e se contorcem, buscando a supremacia. Compondo o puzzle que sou. E vou gerindo e equilibrando todas estas forças contraditórias como se a minha vida fosse uma espécie de ginástica permanente de emoções. Por vezes, não vivo: faço gestão de pesos. Evito quedas. Respiro. Sonho com a possibilidade de leveza. Sem saber o que mais pesa em mim.
Nudez
Despiu-se de tudo, lentamente. Muito lentamente. Até ficar apenas o amor.
Toque
Consegues desracionalizar o toque? Ignorar intenção e motivação, ignorar a possibilidade de consequência. Ser toque puro, simplesmente. Consegues?
Urgência
Entro no escritório e digo bom dia; alguém responde, num murmúrio contrariado. Rostos fechados, cabeças cabisbaixas; o silvo dos computadores misturado com os gemidos das cadeiras, com o sussurro das respirações. Ligo o computador e aguardo, sem pressa: mais uma vez, a sensação de que precisa de mais tempo para arrancar. Senti algo semelhante em relação ao elevador: mais vagaroso, como se estivesse cansado; e antes, o autoclismo: tanto tempo para encher; e a água do duche: uma eternidade até ficar quente. Tudo mais demorado. Olho o computador e pergunto se serei eu que estarei mais lento em relação à vida. Mais impaciente em relação ao mundo? Com urgência, com pressa; mas de quê?
Visão
O que não conseguimos ver cega-nos.