É um caso de revivalismo? “Penso que sim. Há muitas camadas jovens a aprender, há muitos grupos de tocadores”. Luís Eusébio conhece todos os segredos daquele que é, talvez, o mais democrático e popular dos instrumentos portugueses. Idealmente, a construção do cavaquinho exige, não só, talento e paciência, como também a melhor matéria-prima. “A madeira mais namorada é o pau santo do Brasil ou da Índia”, explica ao JORNAL DE LEIRIA. Por ser “mais densa” e porque “reflecte melhor o som”. Há duas técnicas de construção (a espanhola e a francesa) e os exemplares para uso profissional custam sempre acima de 600 euros. Os clientes mais comuns do Luthier d’Óbidos são, além dos músicos, os estudantes das tunas académicas e os reformados, que, geralmente, aprendem já depois da idade activa, por exemplo, nas universidades seniores.
Quando o público das Festas de São Sebastião, em Valado de Frades, recebe o Grupo de Cavaquinhos “Os Farra”, os lugares em palco são maioritariamente ocupados por cabelos grisalhos e entre os tocadores estão duas antigas professoras do ensino especial, ambas de 79 anos, que se iniciaram na música quando terminaram a carreira. “Há que preencher o espaço com coisas alegres”, comenta Maria Helena Mateus. “Fizemos um espectáculo há oito dias interessantíssimo na Biblioteca Municipal de Alcobaça, o projecto Portugal de Lés a Lés, em que tocámos canções do norte ao sul, incluindo ilhas”.
A socialização também as motiva. “Damo-nos todos muito bem”, assinala Mariana Antunes. Do mais velho, com 84 anos, à mais nova, de apenas 12 anos de idade. Miriam Serrazina frequenta aulas de piano e de flauta transversal na Academia de Alcobaça, gosta de ouvir Bárbara Tinoco, e, para ocupar o tempo, acompanha a mãe no colectivo “Os Farra”. Além dela, a mais jovem é Mariana Santos, actualmente numa pausa por estar a estudar em Coimbra, no ensino superior. Toca saxofone na Filarmónica de Porto de Mós, mas começou pelo cavaquinho, ainda na infância. Nos “Farra” tem contacto com “muitas músicas tradicionais”, que os amigos da mesma geração “não conhecem”. E valoriza os afectos. “É uma família, sou filha do maestro e a neta deles todos”.
Minutos antes da subida ao palco nas Festas de São Sebastião em Valado de Frades, a afinação de cada instrumento, um a um, numa mesa improvisada entre balcões de cerveja e de chouriças, cabe a Bruno Santos, pai de Mariana, o maestro responsável pelo aparecimento do grupo, que começou “por brincadeira”, lá em casa. Chegaram a ser 50, antes da pandemia, actualmente são 35 e ensaiam na Boavista, uma localidade da freguesia de Maiorga, entre Alcobaça e Aljubarrota. São sobretudo pessoas acima dos 60 anos. “Aprendendo três ou quatro acordes, para o acompanhamento, mesmo não sabendo música, eles já se sentem realizados”, comenta o maestro. O cavaquinho “é mais acessível” do que outros instrumentos, logo, proporciona “resultados mais rápidos”, segundo Bruno Santos. “No fim dos serviços [as actuações ao vivo] há sempre um petisco, eles adoram isto”. Também por causa das universidades seniores, o cavaquinho “está a ganhar muita força”.
O grupo “Os Farra” é uma escola e a aprendizagem, para os mais jovens, “vai dar-lhes uma bagagem de música popular que hoje as crianças não têm”, salienta Bruno Santos, que é saxofonista. Interessou- se pelo cavaquinho por “curiosidade” e porque, enquanto professor, precisava de um instrumento que lhe permitisse tocar e cantar em simultâneo. “Os Farra” interpretam exclusivamente temas tradicionais portugueses e através do projecto Lés a Lés, já apresentado, por exemplo, em escolas e lares de terceira idade, ligam a sonoridade de diferentes regiões com outros elementos etnográficos, como o vestuário. No repertório não falta a canção “Alcobaça”, de José Belo Marques, popularizada por Maria de Lourdes Resende, com que costumam terminar os concertos.
Segundo a associação cultural Museu Cavaquinho, que se dedica a documentar, preservar e promover a história e a prática do cavaquinho em Portugal, e que tem publicado informação relacionada com acordes, técnica, partituras, livros, discos, modelos ou ornamentos, no distrito de Leiria estão listados dois construtores, quatro tocadores, sete grupos e três escolas, num processo de inventário que continua a decorrer.
Habitualmente, o cavaquinho é considerado “o pai do ukelele”, originário do Havai, para onde o cavaquinho terá sido levado por emigrantes portugueses. “O ukelele é mais parecido com uma viola pequena. Tem a escala sobreposta no tampo, como tem uma guitarra. O nosso cavaquinho tem a escala rasa com o tampo”, explica Luís Eusébio. “As afinações também variam muito”. No cavaquinho, cordas de aço – “fura tudo”, diz o Luthier d’Óbidos, “não há outro instrumento igual” – e, no ukelele, cordas de nylon.

Para começar, inspirou-se num exemplar do início do século passado, um cavaquinho minhoto. Da oficina, também já saiu o chamado cavaquinho urbano de Coimbra, mais estreito e mais pequeno, com cordas de nylon, que terá surgido, alegadamente, para que os estudantes pudessem tocar na rua até horas tardias sem causar demasiado incómodo.
O músico Júlio Pereira é provavelmente o nome que mais rapidamente se associa ao cavaquinho e é graças a um disco dele que Abílio Caseiro, da Nazaré, é hoje tocador de cavaquinho – e de outros instrumentos tradicionais, como a guitarra portuguesa, o bandolim e, se necessário, a gaita de foles.
“Sou grande fã do Júlio Pereira, adorei o som do cavaquinho e fui à procura da sonoridade”. Começou aos 17 anos, “sozinho, com muita dedicação”, e hoje, com 60 anos, continua a gravar e a tocar ao vivo. Com as bandas Abílius e Ó da Gaita editou vários discos e, no percurso, passou pela televisão, incluindo o programa Ás do Cavaquinho, exibido pela RTP.

A canção “São Gonçalo de Amarante”, de Júlio Pereira, precisamente do álbum Cavaquinho, é uma das favoritas de Abílio Caseiro, que também compõe. “O cavaquinho tem uma técnica e se não for utilizada não soa muito bem”, avisa. É preciso tocar “com melodia, com balanço”. E é mais versátil do que aparenta. “Pode-se tocar outras coisas com o cavaquinho, nomeadamente, música brasileira, música inglesa, pode-se empregar muito bem noutros géneros”.
Desde Outubro, a construção do cavaquinho é património cultural imaterial, por decisão da Direcção-Geral do Património Cultural, publicada em Diário da República, após um pedido de registo no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial submetido pela Associação Cultural Museu Cavaquinho.