Quando em Março do ano passado, Ana Graça e Hugo Rainho se mudaram para uma nova casa, em Regueira de Pontes, no concelho de Leiria, passaram também a adoptar novos hábitos de reciclagem e de separação de resíduos. Aos recipientes para as embalagens (amarelo), para papel e cartão (azul) e para o vidro (verde), que já tinham na anterior residência, juntaram um outro, de cor castanha. É aí que colocam as cascas de frutas e de legumes, que resultam da preparação das refeições, e os restos de comida que acabou por se estragar, os chamados biorresíduos.
Ana e Hugo fazem parte dos cerca de 900 aderentes ao RecicLar,um projecto- piloto de recolha porta-a-porta que a Câmara de Leiria iniciou, no ano passado, na freguesia de Regueira de Pontes e que servirá de teste para a nova fase de recolha e tratamento de resíduos que aí vem, com a obrigatoriedade de, até ao final deste ano, os municípios disponibilizarem um circuito para a recolha selectiva dos biorresíduos.
À semelhança de Leiria, na região vão avançar outras experiências no âmbito de uma candidatura apresentada pela Comunidade Intermunicipal, com o objectivo de aferir a solução mais adequada a cada território. No caso de Regueira de Pontes, a aposta é na recolha porta-a-porta. A cada participante no projecto foram distribuídos recipientes para a separação de resíduos, incluindo um pequeno balde para os biorresíduos.
Em dias estipulados, cada um desses equipamentos é colocado junto à via pública, para a respectiva recolha: “À segunda- feira são as embalagens, à terça e sexta-feiras os biorresíduos; o papel e o cartão é à quarta-feira e os indeferenciados à quinta-feira, sempre a partir das 9 horas de manhã”, especifica Ana Graça, que, para evitar esquecimentos, criou um lembrete no telemóvel para cada um dos dias.
“É uma questão de rotina”, diz a moradora, reconhecendo que, com o sistema porta-a-porta, faz hoje “muito mais” reciclagem e separação de resíduos. É assim em casa de Ana e de Hugo e será assim na maioria das habitações abrangidas pelo projecto RecicLar atendendo aos números já aferidos.
Nos primeiros dez meses de projecto a capitação de recicláveis passou de 13,7 quilos por habitante para 45,1 quilos, o que corresponde a um aumento de “228 por cento”, salienta Luís Lopes, vereador do Ambiente na Câmara de Leiria, adiantando que, durante esse período, foram recolhidas 49,8 toneladas de biorresíduos.
Reduzir e valorizar
Os biorresíduos representam cerca de 34% dos resíduos urbanos produzidos na Europa, mas uma percentagem significativa acaba ainda depositada em aterro, muitas vezes sem qualquer valorização.
Ora, foi precisamente para inverter essa realidade, numa tentativa de reduzir o desperdício alimentar e a quantidade de lixo colocada em aterro, que surgiu a directiva dos resíduos de 2018, segundo a qual, a partir de 1 de Janeiro de 2024, a recolha selectiva de biorresíduos passa a ser obrigatória, com a responsabilidade a recair sobre os municípios.
As entidades gestoras, como a Valorlis ou a Valorsul, ficam incumbidas do tratamento e valorização desses resíduos, através, por exemplo, da produção de energia, com o aproveitamento de biogás, e de composto natural.
A menos de um ano de terminar o prazo para, cada concelho, tenha a funcionar um fluxo para os biorresíduos, o JORNAL DE LEIRIA foi tentar a perceber como é que a região se está a preparar para esse “desafio”, como lhe chama o vereador do ambiente da Câmara de Leiria.
“Gerir resíduos orgânicos é um processo complexo, por causa das escorrências e dos odores. Mas é um caminho que obrigatoriamente temos de seguir, por uma questão de sustentabilidade ambiental, mas também por razões económicas”, defende Luís Lopes.
No caso de Leiria, a par da experiência em curso em Regueira de Pontes, o município está a criar um circuito independente para a recolha dos biorresíduos, que abrangerá as uniões de freguesia de Leiria, Pousos, Barreira e Cortes, de Marrazes e Barosa e de Parceiros e Azoia, “não na íntegra, mas grande parte desse território”.
Trata-se do projecto Leiria + Verde, que prevê a distribuição de 16 mil contentores dedicados aos biorresíduos, a entregar a particulares e restaurantes. A par desses recipientes, de recolha porta-a-porta, haverá também contentorização de superfície, de utilização colectiva, idêntico ao actual contentor verde onde é depositado o lixo comum. A recolha será feita pela câmara com recurso a dois veículos específicos.
Luís Lopes assume que a implementação do projecto, inicialmente anunciada para arrancar até Março deste ano, só deverá começar no segundo trimestre, um atraso que se deve a “dificuldades de fornecimento de viaturas e contentores”. A expectativa é que, “até ao final de 2023, o circuito esteja implementado na plenitude”, abrangendo “mais de 50% dos munícipes” do concelho.
Prémios para quem aderir
“A legislação diz que, até ao final de 2023, os municípios têm de dispor de um fluxo para os biorresíduos. Não diz que é para a totalidade do território. No caso de Leiria, a cobertura só ficará completa até 2026”, avança o vereador Luís Lopes, adiantando que serão feitas alterações ao regulamento de resíduos, que poderá a vir contemplar incentivos para quem fizer a recolha selectiva.
Para já, o expectável é que, com a implementação do novo fluxo para os biorresíduos e a consequente redução de resíduos em aterro, a câmara veja baixar a factura que paga à Valorlis – em 2022 foi de 37,90 euros por tonelada -, com reflexos na “redução de tarifa” ao consumidor, cobrada juntamente com a água.
Na região irão também avançar projectos- piloto no âmbito de uma candidatura apresentada pela Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria, a implementar nos principais centros urbanos, com o foco no sector horeca (restauração, hotelaria e comércio) e nas cantinas escolares.
A recolha será assegurada pelos municípios, “com recursos a viaturas eléctricas e contentorização com sensores e sistema informático incorporado que permite saber, em tempo real, a quantidade de resíduos depositada”, explica Paulo Batista Santos, primeiro-secretário daquele organismo.
A estimativa é que esta experiência-piloto, a arrancar “no segundo trimestre” e com um sistema de atribuição de prémios aos aderentes, abranja entre 25 a 30 mil pessoas e permita aferir o “modelo que melhor se adapta a cada território”.
A Nazaré, por exemplo, que integra a comunidade intermunicipal do Oeste, tenciona criar, numa primeira fase, a recolha de biorresíduos junto da restauração e hotelaria e “promover a compostagem em áreas rurais”.
O vereador Orlando Rodrigues salienta, no entanto, que a primeira solução “está pendente de capacidade da Valorsul em recolher esses resíduos, de forma diferenciada, algo que ainda não ocorre”. Apesar desse constrangimento, o município está a “preparar a implementação deste modelo de recolha, assim como o de materiais recicláveis, com estímulo financeiro para os aderentes”.
Valorlis investe seis milhões
Para assegurar o encaminhamento devido dos biorresíuduios recolhidos selectivamente, a Valorlis, que serve os concelhos de Batalha, Leiria, Marinha Grande, Ourém, Pombal e Porto de Mós, está a investir seis milhões de euros na sua unidade de valorização orgânica, com a criação de uma nova linha de tratamento, com capacidade para 25 mil toneladas por ano, a arrancar em 2023.
Com este investimento, a Valorlis duplicará a resposta nesta área, salienta o Relatório e Contas da empresa referente a 2021, o último disponível.
Neste momento, a Valorlis faz já a valorização de resíduos orgânicos, recolhidos de forma indiferenciada (através dos contentores de lixo comum), que são separados e tratados na unidade de tratamento mecânico e biológico, permitido a sua transformação num composto natural aplicável em pomares, jardins, vinha ou olival.
Em 2021, foram produzidas 2.700 toneladas desse correctivo, das quais “93% foram comercializadas para explorações agrícolas”. Da valorização orgânica de resíduos resulta também o aproveitamento de biogás para a produção de energia eléctrica.
Serro Ventoso com compostores colectivos
A ideia de instalar um compostor comunitário em Serro Ventoso, no concelho de Porto de Mós, partiu do desafio lançado à junta de freguesia por moradores que se queriam “ver livres” de alguns resíduos, como folhas, relva ou ramos de árvores e que, apesar de se tratar de uma zona rural, acabavam, muitas vezes, depositados no contentor de lixo comum.
Agora, “já não há desculpa”, avisa Carlos Cordeiro, presidente da autarquia, que no ano passado instalou dois compostores comunitários, cada um com capacidade para mil litros. “Como estamos numa zona rural, onde se aproveitam as cascas e os restos de comida para a alimentação dos animais, as pessoas depositam sobretudo resíduos verdes”, conta o autarca, que acredita que este tipo de soluções é uma “boa ajuda” para o tratamento e recolha dos biorresíduos.
“Sem dúvida que é, mas tem de ser em complemento de outro tipo de opções de recolha, como o porta-a-porta”, defende Sara Correia, dirigente da associação Zero. No caso de Leiria, o circuito que está a ser montado para os biorresíduos prevê a instalação de dois compostores comunitários, um na Urbanização de Santa Clara e outro junto ao centro escolar da Barreira, no Telheiro.
Zero preocupada com “fraca” aposta na recolha porta-a-porta
A associação ambientalista Zero está preocupada com a fraca aposta dos municípios na recolha porta-a-porta- de biorresíduos e teme que esta lacuna vá “perpetuar” o incumprimento por parte de Portugal das metas que apontam para a reutilização e reciclagem de 55% dos resíduos urbanos já em 2025.
Quando falta menos de um ano para terminar o prazo dado aos municípios para operacionalizar a recolha selectiva de biorresíduos, a Zero analisou as soluções propostas por 84 municípios, seleccionados aleatoriamente entre as candidaturas apoiadas pelo Fundo Ambiental, com a maioria a apostar na recolha na via pública através de contentorização dedicada, sendo que apenas 25 incluem a recolha porta-a-porta (PaP).
Essa é uma estratégia “errada”, defende Sara Correia, da direcção da Zero, alegando que, apesar de “mais fácil de implementar” e “aparentemente mais económica”, a opção de recolha selectiva na via pública “é menos eficiente” do que o sistema PaP, porque “desresponsabiliza os cidadãos relativamente aos resíduos, o que terá como consequência uma baixa taxa de recolha como já acontece com os ecopontos”.
Uso ou não de sacos
Uma das questões que se coloca em relação à separação dos biorresíduos prende-se com uso ou não de saco. Em alguns municípios onde já faz a recolha selectiva destes resíduos é recomendado que, para facilitar a higienização, as pessoas os acomodem em sacos de plástico que são depois separados no processo de valorização através de um sistema de abre-sacos.
Esta é, no entanto, uma prática que deve ser abandonada, alega Sara Correia. A dirigente da Zero defende como alternativa o recurso a sacos biodegradáveis que, numa fase inicial, poderão ser oferecidos, sendo que, no caso da recolha porta-a-porta, o ideal é mesmo não utilizar qualquer saco.
A par da aposta em soluções de recolha que demonstram melhores taxas de captura, como o sistema porta-a-porta, a Zero desafia os municípios a implementarem sistemas de Pay-As-You-Throw (PAYT). Neste caso, o pagamento pelo serviço de resíduos é feito em função da quantidade produzida, enquanto actualmente o valor surge indexado ao consumo de água.