“Pode a inteligência artificial ser um artista? E a sua obra, tecida entre algoritmos, é uma peça de arte?”
As perguntas colocadas pela fotógrafa Carla de Sousa (na primeira edição do JORNAL DE LEIRIA em 2023, a propósito da escolha da personalidade do ano na cultura) já podem ser comentadas, precisamente, por tecnologia com inteligência artificial.
Por exemplo, o agora famoso ChatGPT, que responde assim à primeira interrogação: “Sim, a inteligência artificial pode ser usada para criar arte. Há vários exemplos de programas de computador e algoritmos que geram música, pinturas e esculturas. Alguns são baseados em dados de obras de arte existentes, enquanto outros criam novas obras completamente originais. No entanto, a arte gerada por inteligência artificial é geralmente considerada como sendo criada por um computador, e não por um artista humano”.
Sobre a segunda questão, se a obra gerada por algoritmos é uma peça de arte, o protótipo de conversação desenvolvido pela OpenAI devolve o seguinte: “A questão se a obra gerada por algoritmos é considerada arte é objecto de debate. Alguns argumentam que a arte gerada por algoritmos é verdadeira arte, pois ela pode ser criativa, emocionante e esteticamente agradável. Outros argumentam que a arte gerada por algoritmos não é verdadeira arte, pois não há criatividade humana envolvida. Ainda outros argumentam que a arte gerada por algoritmos é uma forma de arte, mas é diferente da arte criada por humanos”.
O realizador Bruno Carnide, de Leiria, juntou-se à conversa logo no primeiro dia de 2023, com uma curta-metragem, de dois minutos e 22 segundos, com o título Janeiro, finalizada em 24 horas com recurso a ferramentas digitais. Dall-E (para gerar imagens), FakeYou (vozes) e Soundraw (música), entre outras.
Só há um humano na ficha técnica, ele próprio. “As imagens não foram captadas, desenhadas ou modeladas por ninguém. O texto não foi escrito nem falado por ninguém. A música não foi composta nem tocada por ninguém. Tudo foi gerado por computador com recurso apenas a palavras ou indicações que dei”, explica, nas redes sociais. “A inteligência artificial está tão avançada, que mesmo que eu repita o processo novamente com as mesmas palavras, nunca irei obter o mesmo resultado, logo estou sempre a ‘criar’ algo completamente único. Assim, num estalar de dedos”.
Na mesma publicação, Bruno Carnide argumenta que “em 2022 a inteligência artificial (AI), no que diz respeito à criação de imagens geradas por computador, teve um crescimento gigante, ao ponto de hoje em dia qualquer um de nós com meia dúzia de palavras conseguir ‘criar’ uma imagem digna de estar exposta num museu”, o que considera “preocupante e acima de tudo assustador, para todos os artistas”, para ele, enquanto cineasta, “e para o valor que a arte pode vir a ter num futuro muito próximo”. E conclui: “A ideia de como a AI pode vir a desvalorizar a arte e o criador deixam-me com muito medo do futuro”.
ESAD adapta-se
Na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha (ESAD.CR), o tema está a originar “uma reflexão”, também pelo efeito no sector das indústrias criativas, adianta o director, João dos Santos. “Já falámos internamente e há algumas alterações ou adaptações que vão ter de ser feitas”. Um dos objectivos da instituição integrada no Politécnico de Leiria é sensibilizar os alunos para uma “utilização consciente” e “ética” da tecnologia com inteligência artificial. A protecção dos direitos de autor, a pirataria e o combate ao plágio tornam-se preocupações quando estão em causa programas que utilizam dados e criações de terceiros.
João dos Santos considera que “é real” o “risco” de profissionais nas áreas da ilustração, animação, cinema, publicidade, marketing e design gráfico, entre outras, serem “substituídos por um modelo de inteligência artificial” em algumas tarefas e lembra que, como noutros momentos, “empregos assentes no preço são os primeiros a desaparecer”.
Por outro lado, as tecnologias com inteligência artificial, quando incorporadas no processo criativo, podem contribuir para valorizar o trabalho do autor, ou seja, “bem utilizadas podem abrir mundos”, assinala o director da ESAD.CR, para quem “os artistas ainda vão ser dos últimos a usar estas ferramentas acriticamente”.
O instante em que um modelo de inteligência artificial se torna autor é, para João dos Santos, também ele investigador e artista plástico, inevitável. “Acho que sim”, conclui. “Há-de haver um dia em que a coisa se gera num meio próprio” e com “agentes autónomos”. Por exemplo, no metaverso.
É arte? “Pode ser, sim”, responde ao JORNAL DE LEIRIA. “E certamente vai haver pessoas que vão comprar”.
Em suma, “enquanto humanos podemos apreciar e valorizar como artísticas manifestações e criações que surgem de um meio digital como a inteligência artificial”, embora seja “muito mais interessante olhar do ponto de vista da intenção de quem faz”.
Valor social
Na reflexão publicada pelo JORNAL DE LEIRIA na primeira edição de 2023, Carla de Sousa lembra que “o acto criativo tem sido considerado um acto eminentemente humano”, mas, para “questionar a verdadeira essência da criação literária e artística”, escolhe a inteligência artificial como personalidade do ano na cultura e justifica: “pela primeira vez, uma obra visual gerada através de inteligência artificial foi agraciada com um prémio de arte”.
A fotógrafa de Leiria refere-se à obra “Théâtre D’Opéra Spatial”, apresentada por Jason M. Allen num concurso realizado nos Estados Unidos e obtida através de um programa de inteligência artificial chamado Midjourney, que permitiu gerar a imagem através de texto.
A intersecção entre a arte e a inteligência artificial já chega a eventos tão importantes como a Bienal de Veneza, onde, também em 2022, aquele que é considerado o primeiro robô artista, Ai-Da, apresentou uma exposição a solo.
Para Carla de Sousa, não restam dúvidas de que o debate é inquietante. “O que restará ao humano fazer, quando tudo estiver dominado pela inteligência artificial?”, pergunta. “Colocam-se muitas questões”.
Há um “valor social e cultural agregado” à arte, que pressupõe “intenção” e “provocar no outro uma reacção”, caso contrário, acredita a fotógrafa, “não se cumpre”.