Este ano, houve quem recorresse à urgência do Centro Hospitalar de Leiria (CHL) mais de 20, 30, 50 ou de 100 vezes, ultrapassando, em muito, os parâmetros definidos pelos termos de referência para a contratualização de cuidados no Serviço Nacional de Saúde para 2023, que classifica como utilizador frequente quem vá mais de quatro vezes por ano. São os designados hiper-utilizadores, que, em muitos casos, repetem esse comportamento com os cuidados de saúde primários.
De acordo com dados facultados pelo CHL, este ano, até ao final de Novembro, houve 3.486 doentes que recorreram mais de quatro vezes à urgência, superando o número registado em todo o ano de 2021 (3.019). Desses “doentes frequentes”, 20 registaram mais de 20 idas à urgência e, destes, três recorreram ao serviço em mais de 50 ocasiões.
Houve ainda dois casos de utentes que ultrapassaram as 100 idas à urgência, um deles com 152 utilizações do serviço em onze meses, o que dá quase uma ida de dois em dois dias. No ano passado, o máximo registado foi de 72 utilizações pelo mesmo utente.
Ordem pede estudo
Em Março deste ano, os colégios das especialidades de Medicina Interna e de Medicina Geral e Familiar da Ordem dos Médicos pediam que fosse feito um retrato dos hiper-utilizadores das urgências, para avançar com reorganização dos serviços. Segundo o jornal Público, numa reflexão conjunta sobre o elevado recurso às urgências, aqueles dois colégios defendiam que solução não é a alocação de mais profissionais, mas sim outra forma de organização e uma maior capacidade de resposta dos centros de saúde.
Entre as soluções que apresentavam estava a identificação dos grandes utilizadores das urgências, a gestão integrada do doente crónico e a educação para a saúde.
Mais literacia nesta área é também o que defende Anton Vasin, médico no Serviço de Urgência do CHL. Admitindo que alguns dos casos de hiper-utilização podem ter associadas questões do foro social e mental, o médico refere que essas são situações “pontuais”.
Segundo o clínico, o grosso das utilizações frequentes está relacionada com “queixas ligeiras que não justificam o recurso à urgência”. O problema é que, como os centros de saúde “também estão muito sobrecarregados” – “mesmo com consulta aberta, é muito difícil obter vaga” – a solução acaba por ser a urgência, que tem “porta aberta 24 horas”, salienta Anton Vasim.
Por outro lado, “a pessoa sabe que, indo ao Serviço de Urgência, poderá fazer análises e raio-x. É quase o serviço mínimo garantido. Se o doente tem uma queixa, tenho de provar que realmente posso dar alta”.
Três utilizações em dois dias
“Percebo que, para a pessoa, o seu problema é sempre grave e urgente. Mas, objectivamente, não é isso que acontece e muitas das situações que levam as pessoas à urgência podem ser tratadas com o médico de família”, reforça Anton Vasin, sublinhando, contudo, que a hiper- -utilização é também problema transversal aos cuidados de saúde primários.
Isso mesmo é confirmado por Marco Neves, director executivo do Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) do Pinhal Litoral, com base num levantamento feito há cerca de dois anos por este organismo.
“Concluiu-se que a generalidade dos muito frequentadores do serviço de urgência, também são muito utilizadores dos cuidados de saúde primários”, avança o dirigente. “Temos casos de pessoas que vão num dia à tarde a uma unida de nossa, à noite vão ao hospital e no outro dia de manhã voltam ao nosso serviço”, revela.
Essa é também uma realidade no ACES do Médio Tejo, ao qual pertence o concelho de Ourém. “Há utentes com 70 ou 80 utilizações do serviço por ano”, revelou Diana Leiria, directora-executiva deste ACeS numa conferência recente sobre contributo do terceiro sector na área da saúde, promovida pela Misericórdia do Entroncamento.
Na ocasião, a responsável advertiu para os riscos que tal comportamento pode ter na medicação excessiva, uma vez que alguns desses super-utilizadores chegam também a recorrer ao privado, que “não tem acesso à informação sobre outras prescrições, a não ser, a partir dos dados dos doentes”.