Portugal é o mais recente país europeu a criar um instrumento para regular a estadia temporária dos denominados nómadas digitais, pessoas que, recorrendo às potencialidades das novas tecnologias, trabalham remotamente, o que lhes permite viver em várias cidades e países do mundo por períodos mais ou menos longos de tempo.
Segundo notícia avançada pelo Público, o visto de estada temporária e de autorização de residência para nómadas digitais pode ser pedido a partir de 30 de Outubro nos consulados portugueses ou no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
A mesma fonte realça ainda que Lisboa já é um dos destinos favoritos dos nómadas digitais, mas o nosso jornal foi ao encontro de estrangeiros que também incluem o distrito de Leiria na sua “rota”. Encontrámos ainda portugueses, desta região, que trabalham pelo mundo inteiro, num estilo de vida sui generis, onde o “escritório” tanto pode ser um hotel, uma van ou uma autocaravana, estacionada pelas paisagens arrebatadoras da Malásia, da Bolívia ou [LER_MAIS]do Brasil.
Sede de conhecer novas culturas e de viver em liberdade são características transversais deste género de colaboradores.
Da Alemanha para o mundo, com paragem em Portugal
Laura Link tem 34 anos e é alemã. Por estes dias, de licença de maternidade e com um bebé de seis meses, tem ficado pela aldeia do Carril, em Ferreira do Zêzere, próximo de Figueiró dos Vinhos, Alvaiázere e Ansião, concelho onde fez amizades e onde gosta de regressar uma vez por ano.
De momento está a “aproveitar o sol de Portugal”, mas não será por muito tempo. Planeia fazer um pit stop na Alemanha e depois disso regressar ao activo, em Dezembro, trabalhando para uma empresa alemã, como responsável de marketing, mas a muitos quilómetros de distância do seu país natal.
A 16 de Novembro já terá partido com a família numa viagem para a Tailândia. “E depois disso, veremos”, partilha a recém-mamã, nómada digital na verdadeira acepção do conceito.
Laura começou por criar um blogue sobre viagens e por fazer trabalhos como redactora freelance. Mais tarde fundou a sua própria empresa, com mais dois sócios, através da qual dinamizava semanas de workshops destinados a pessoas que, tal como ela, quisessem tornar-se nómadas digitais. Duas vezes por ano, essas sessões eram promovidas num hostel próximo da Lourinhã.
Depois disso, à distância, trabalhou também para diferentes empresas da Suíça (agência web) e da Alemanha (protecção ambiental das abelhas).
Viajou pelo mundo, a trabalhar a partir da Portugal, da Nova Zelândia, da Tailândia, Laos e Camboja. Foi no Camboja que conheceu o seu companheiro e por onde ficaram durante cinco anos até ter surgido a pandemia.
“Não poder estar com a família e com os amigos o tempo todo” é uma desvantagem deste estilo de vida, reconhece Laura. Por outro lado, “alargam-se horizontes, aprende- -se sobre culturas, pessoas e natureza” e “sentimo-nos livres”, valoriza a alemã, que trocou “um lar”, por uma pluralidade deles, desde hostels, hospedarias, passando por alojamentos Airbnb até casas de amigos e da família.
De Leiria para Ásia, Europa e América Latina
Dora Matos é natural de Leiria, formada em Comunicação Social, tem 32 anos e já passou grande parte deles a viajar e a conhecer países enquanto trabalha. Dora e o marido, Alfonso Castillo, galego, eram ambos jornalistas em Madrid. Depois do estágio, não foram contratados e, naquele “desgosto conjunto”, decidiram fazer uma viagem introspectiva, de bicicleta, percorrendo os Caminhos de Santiago. Um trajecto que a reaproximou da sua paixão pelo desporto e pelas viagens.
Quando, em 2015, surgiu a possibilidade de Dora ir fazer voluntariado para a Roménia e promover o uso da bicicleta junto de uma comunidade, Alfonso acompanhou-a, sem deixar de trabalhar ao mesmo tempo na sua empresa de audiovisual e legendagens que tinha criado recentemente. “Foi então que, naturalmente, pensámos que conseguíamos trabalhar e descobrir o mundo”, recorda Dora.
Ao mesmo tempo que ajudava Alfonso na sua empresa, Dora foi gerando cada vez mais conteúdos para o seu blogue sobre vida saudável, desporto e viagens. “Percebi que as pessoas queriam ter a minha ajuda e por isso fiz uma formação em Health Coach. E passei a dedicar- me muito mais às minhas sessões individuais online”, conta a empreendedora, que já tem clientes que a seguem, à distância, a partir de Portugal, Espanha, e também do Canadá, Suíça, Londres, Espanha e Macau, onde é forte a presença de emigrantes portugueses.
Vietname, Malásia, Macau, Japão, Indonésia, Brasil, Equador, Bolívia e costa francesa são alguns dos muitos locais que o casal tem visitado e a partir dos quais tem sempre trabalhado. De autocaravana, de van ou de transportes públicos, alojados em hotéis ou hostels, o mais importante, explica Dora, “é saber com que tipo de internet se conta em cada local que se visita e ajudam também as aplicações de mapas que funcionem offline”, realça a nómada digital, lembrando que este estilo de vida exige “equilíbrio” entre lazer e responsabilidades profissionais.
“A pessoa tem que ter vontade, flexibilidade e disciplina para não se render à preguiça”, frisa a jovem.
De passagem por Leiria durante duas semanas, o casal prepara-se para novas aventuras a partir de Novembro, rumando de novo à Malásia.
Num único mês, trabalhar em 58 locais de dois países
Foi há relativamente pouco tempo que Rafael Almeida, de 49 anos, descobriu um estilo de vida que só lamenta não ter conhecido antes. Salienta que não é um nómada digital no sentido mais puro, porque continua a ter a sua casa na Marinha Grande, de onde ainda vai trabalhando.
Ainda assim, mudar de emprego permitiu-lhe desempenhar funções à distância, com muito maior liberdade de movimentos, e assim obter mais satisfação na forma como concilia vida profissional e pessoal.
Com formação base em Engenharia Electrotécnica e dos Computadores, Rafael é actualmente resource manager numa empresa francesa, que tem um centro de serviços partilhados em Lisboa. Uma gestão de milhares de pessoas que faz através da internet. Por essa razão, explica, “não preciso trabalhar a partir de um local fixo e tudo o que necessito é um computador e internet”.
Agora, explica o responsável, as reuniões presenciais ocorrem apenas quando há que conhecer uma equipa, mas mais no sentido de team building.
A empresa tem protocolos com hotéis, a partir dos quais Rafael pode trabalhar, mas, se preferir, também pode exercer as suas funções em casa de amigos. “No limite, até num carro ou numa tenda”, brinca o especialista de recursos humanos que, só em Setembro, trabalhou em 58 locais de 14 cidades entre Portugal e Espanha, desde a colectividade da Comeira, na Marinha Grande, passando por bibliotecas e hotéis.
“Consegui ter mais actividade na minha vida pessoal durante este mês do que tinha no passado durante o ano inteiro”, compara Rafael, que sem a obrigação de cumprir horário no escritório, consegue dar resposta às solicitações profissionais e, ao mesmo tempo, aproveitar o melhor que as cidades por onde se desloca lhe vão proporcionando, sejam concertos ou partidas de futebol.
Com a devida auto-disciplina, trabalhar sozinho permite-lhe maior entrega, optimização do tempo e maior rendimento, defende Rafael, admitindo que nunca teve tanta disponibilidade para se dedicar aos estudos. Mestrado em Cibersegurança e Informática Forense, no Politécnico de Leiria, será um dos desafios para os dois próximos anos, adianta.
Na empresa tecnológica onde trabalha há muitos nómadas digitais. Quem vem de países africanos e do Brasil gosta de trabalhar em Portugal, onde procura melhores condições financeiras e mais segurança. Já os nórdicos vêm trabalhar para cá para ter melhor qualidade de vida, observa o responsável, lembrando que não são só as empresas que beneficiam desta forma de actuação.
No caso da sua empresa, ao possibilitar o trabalho remoto, a organização também acaba por ter acesso aos melhores colaboradores, que podem estar a exercer a partir dos mais diversos pontos da Europa, defende Rafael Almeida.
Quando a liberdade chega aos 60 anos
Foi já em 2022 que Óscar Santos, de 60 anos, começou a trabalhar por sua conta como gestor de projectos, fazendo a mediação entre os fabricantes de peças plásticas e as marcas clientes de indústria automóvel. Fá-lo a partir de casa, nos Montes, em Alcobaça, onde, sozinho e sem perturbações externas – “que sempre acontecem em escritórios de open spaces”- aproveita melhor o seu tempo.
A trabalhar com a China e com Portugal, aproveitar as diferenças de fuso horário para cuidar da sua horta ou dos animais são possibilidades que até o ajudam a pensar e a encontrar soluções para os problemas profissionais que se levantam.
Sem obrigação de se fixar num escritório, perde a conta às vezes em que trabalha a partir das empresas que visita ou no trajecto de volta a casa, junto a rios ou parques verdes.
Há muito que os países desenvolvidos da Ásia, que frequentava com regularidade, lhe tinham mostrado que o trabalho remoto era possível. Mas, em Portugal, este estilo de vida ainda emperra. Por um lado, com o serviço de internet (muitos meses de luta foram precisos até que a casa de Óscar tivesse acesso à fibra); por outro lado, ainda existe a ideia nos patrões portugueses que é por cumprirem horário fixo num escritório que os funcionários produzem melhor.
“Faz sentido ter empresas de alta tecnologia a pagar rendas altíssimas para se sediarem em Lisboa, quando os colaboradores podem trabalhar à distância noutros pontos do País?, questiona Óscar.