No mesmo mês em que vimos partir Cruzeiro Seixas, um dos mais profícuos promotores do surrealismo em Portugal, decidi apresentar um livro que fará sempre as delícias dum imaginário perdido meu e a tentativa de entender quase o que é indecifrável no nosso paradoxo razão vs. papel do inconsciente.
Este Pena Capital, eleva Mário Cesariny e o próprio surrealismo português a um patamar de enorme importância cultural e histórica, sendo este um conjunto de poemas e colectâneas que com os anos vem sendo reeditado e objecto de emendas e acrescentos.
O livro homónimo foi publicado em 1957, tendo por esta altura o autor enviado a Cruzeiro Seixas esta carta e que dá conta sucintamente acerca da utilidade e importância da brochura e do poema: “O meu livro dito Pena Capital – capital para todos, sem esquecer o autor – chegou às livrarias. Vou fazer-to chegar – apesar de, ao que me parece, não tenhas tomado na devida conta a matéria constante do poema que dá nome ao livro e que não é outro senão o que lá tens, mal titulado: António o Azul o Poeta. Pena Capital, é mais correcto.”
É também no jogo da fantasia, quer pela paródia mas também pelo cunho sentimental (o nosso mais comum património), que Cesariny traz à obra um aspecto de viagem evocatória com poder de golpear a realidade presente criando em si uma nova realidade.
Evocatória de Pessoa e seus heterónimos, dos amigos presentes e dos idos. De plasmar bem nas suas obras o surrealismo ortodoxo. Evoca por exemplo na abertura do Poema Capital como “Poeta”, António Maria Lisboa, fazendo-o ressuscitar através de “António” com quem irá empreender uma viagem cósmica durante o qual os dois personagens, junto a um terceiro – o “Azul” -, se vão deparando com símbolos de um certo imaginário marítimo caracteristicamente português.
“Caramba caramba António/ já estás muito mais parecido/ ou então era eu que não me lembrava/ Olha hoje o teu clima está magnífico/ olha vamos sair desta cidade/ onde o teu clima é sempre para dividir por cinco/ vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos/ vamos ser os heróis duma tragédia química/ e convidamos o Azul por uma questão de princípio”
Esta obra que evidencia toda uma panóplia de recursos – exercícios de escrita automática, aglutinações, escrita em diferentes línguas, etc – é também uma luta satírica para com a repressão policial e perseguição homofóbica inerente ao regime.
Mas é um carinho que também se entrega à amizade, seja por via da eloquência disforme, seja pelo teor altamente erótico ou a alusão aos demais percursores e representantes dum movimento que tem em Freud uma postura disruptiva em relação aos implantados cânones sociais.
Este livro é enfim para mim o expoente máximo da amizade em poesia.
O encontro com um mundo novo onde as fronteiras não existem e onde essa mesma amizade vê mais em mim do que a própria razão poderia alguma vez contemplar.
Como se toda a poesia e amor coubessem numa só premissa: “Ama como a estrada começa”.