Percorrendo vários quilómetros na região de Leiria o cenário é o mesmo: negro e branco, esculpido em contraste aqui e ali com o amarelo que restou de muitas árvores ou vegetação, que não arderam directamente com as chamas, mas foram queimadas pelo calor, elevadíssimo, das temperaturas do dia aliadas aos graus emanados pelo fogo, que torceu ferros e garrafas de vidro.
O cheiro a terra queimada e pequenas fumarolas evidenciam a força do incêndio. Já na fase do rescaldo, em Colmeias e Memória nem uma viva alma se encontrava. Apenas o queimado à volta das casas.
O colorido das habitações contrastava com todo o cinzento em volta. O fogo rodeou os lares de muitos habitantes, mas os bombeiros, os populares, e até alguma sorte, conseguiram deter as chamas antes dos bens se perderem.
Este cenário não é muito diferente do que se viveu nas várias aldeias dos concelhos a norte de Leiria, muitas delas também fustigadas pelos incêndios.
Os prejuízos ainda estão a ser contabilizados, mas a paisagem evidencia bem a passagem do fogo e muitos mostram o desalento de quem viu os seus bens consumidos pelas chamas.
“Só tivemos tempo de fugir e deixar tudo para trás. Perdi todo o material e ferramentas que tinha. Fiquei sem nada que tinha na arrecadação. Devo ter um prejuízo superior a 15 mil euros”, lamenta Raul Gomes, que viu o fogo muito perto da sua casa, na Portela do Sobral, em Abiul.
Entre patos, galinhas, codornizes e outros animais nem todos se safaram. “Não morreram queimados, mas com o fumo e com o calor”, conta com as lágrimas a marejarem-lhe os olhos.
A viver há 17 anos naquela localidade, a mulher, Celeste Gomes, que recupera de uma doença oncológica, aponta: “não havia água nem electricidade. Não podíamos fazer nada. Só proteger-nos”, resigna-se, recordando as imagens, que teimam em permanecer na memória e que lhe provocaram insónias durante dias.
No concelho de Pombal, alguns dos momentos mais difíceis viveram-se no Rebolo, também na freguesia de Abiul, outra povoação que agora parece pousada na superfície lunar. Há relatos de habitações destruídas ou parcialmente danificadas, em alguns casos, alegadamente, de primeiro uso. Também arderam zonas florestais e de cultivo. Os moradores juntaram-se e defenderam-se com tractores e depósitos de água. “Veio ali do lado do Vale da Abelha, apanhou estas serras todas e aproximou-se das nossas casas, limpou tudo, só não arderam as casas. Ardeu uma lá em cima, que é segunda habitação, e ardeu uma primeira habitação ali à frente, junto ao Rio Nabão”, explicou António Anastácio, com críticas à falta de fiscalização de terrenos que não foram limpos.
Nas Milhariças, muito perto, a estrada entre as duas aldeias esteve cortada várias horas e só os meios aéreos impediram mais prejuízos, com um papel decisivo. “Importantíssimo. Vitais. Ainda há pouco o que foi determinante para extinguir o perigo numa casa foi precisamente a passagem de um meio aéreo, que nos salvou”, contou Vítor Silva. Enquanto o JORNAL DE LEIRIA esteve no local, os aviões fizeram várias descargas para controlar a frente de fogo. Também a população se manteve vigilante, ajudando na resposta. “Temos várias mangueiras e temos estado a proteger as propriedades”, descreveu. “Isto é constante, é por vagas, há momentos de maior tranquilidade e de repente o vento vira e é como um fósforo, em cinco minutos leva tudo à frente”.
Já depois de extinto o incêndio, numa aldeia de Santiago da Guarda, Ansião, Cesário Terceiro está sentado à porta de sua casa, com a mulher, rodeado de terreno queimado. A poucos metros, ardeu por completo a habitação e a carpintaria de uns familiares, que visitavam a aldeia com frequência. Todo o recheio e, pelo menos, dois automóveis foram consumidos pelas chamas. “Ficaram sem nada. Todo o investimento que fizeram ali perdeu-se. Terão de reconstruir, se quiserem, de raiz”, assume Cesário Terceiro.
Na terça-feira da semana passada, tinha ido ao centro de saúde. A mulher aproveitou a ida a Mogadouro para fazer “algumas compras”. Já não conseguiram regressar. “Foi terrível. Víamos bolas de fogo. Achava que tinha perdido tudo. A GNR não nos deixou passar, mas nem queria acreditar quando vi que tudo à volta tinha ardido, mas a casa não. Não sei como escapou. Deve ter sido devido à intervenção de bombeiros e populares”, admite Cesário Terceiro, que só depois do fogo passar pôde regressar a casa.
“Não é nada comigo, mas as lágrimas chegam-me aos olhos”, desabafa um vizinho, que passa de carro e comenta com o casal a emoção que sente ao ver o cenário da aldeia onde vive.
Ainda no concelho de Ansião, a localidade de Louriceiras de Santo António, está entre as que amanheceram entre fumo e cinzas, após horas muito difíceis, com o incêndio a ameaçar casas, pessoas e bens. “Tinha mais de 50 metros de altura”, conta Alice Carrasqueira, que, com a ajuda de familiares e vizinhos, conseguiu defender a habitação, de que as chamas se aproximaram.
“Tinha ali fardos, tinha ali 25 sacos de farinha, tinha ali betoneiras, tinha ali tanta coisa, nem é bom falar”, aponta. “Um carro, ali adiante, isto é tudo meu. Está tudo ardido, tudo”.
Várias motas ficaram danificadas. Praticamente sem apoio dos bombeiros, os moradores precisaram de recorrer à água de uma pequena piscina para enfrentarem o incêndio. E Alice Carrasqueira chegou a ser retirada, durante algumas horas, pela GNR, para um ponto mais seguro da aldeia.
Logo ao lado, da mesma família, Ermelinda Carrasqueira mostrava um barracão totalmente destruído. “Tractor, rachador, corta-mato, pneus novos que tinha aqui guardados, máquinas, o que estava aqui ardeu tudo. E os animais”, descreve.
“E sem bombeiros, sem ninguém. Um cunhado meu é que me acudiu, mais um vizinho, com mangueiras, baldes, a apagar com os pés, se não, tinha ido para a casa”, acrescenta.
Perto, uma serração foi atingida. Faltou electricidade, faltou água. “Eu tinha água no poço, não tinha luz, não podia tirar água”, explica Ermelinda. Dos animais, salvou-se o cão e as galinhas “Tenho uns cinco ou seis terrenos, ardeu-me tudo. Não vou ter uma gotinha de azeite nem lenha para me aquecer no Inverno. É triste”.
Na Memória, em Leiria, o gato branco de Belmiro Casalinho ficou negro. “Não ardeu nada aqui dentro, mas o fumo era imenso. Ficou tudo cheio de cinzas”, conta, referindo-se à sua habitação mesmo em frente a uma oficina de automóveis, que não teve a mesma sorte.
A pequena empresa ficou totalmente destruída, assim como os carros que estavam lá dentro. “Só ouvíamos coisas a rebentar na oficina. Até os vidros estremeciam. Mais parecia um inferno. Nunca esperei ver um incêndio assim.” No Crasto, Colmeias, Adelino Dias perdeu as suas árvores de fruto. “Se não fossem os bombeiros, ardia tudo, até a casa. Mandaram-me ficar fechado por causa do fumo e fagulhas. Foram mesmo uns gajos porreiros”, elogia.