Sempre que Victor Maria entra numa sala, a sua aura, mais do que a presença física, toma conta do espaço. Olhar límpido, amigável e curioso, cativa-nos com o seu discurso.
Tal como o seu homónimo francês novecentista – Victor-Marie Hugo ou só Victor Hugo -, é um autor premiado, radicado em França há quatro décadas, desde que saiu da sua Marinha Grande natal com a PIDE na peugada.
Ali, construiu uma vida como empresário e de ajuda ao próximo. Missão que concretiza através da participação em associações locais e que alia à paixão pelas letras.
Em 2015, recebeu o Prémio Camões, através da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, pela obra em língua francesa “La Vieille Maison de Briques – Bribes d’Une Enfance Portugaise”, livro onde recorda a ancestral casa de família na zona da praia de Mira.
[LER_MAIS]Além deste título, conta com muitos outros, mais de duas dezenas de volumes, escritos em francês e português, que povoou com pensamentos, contos e ensaios. Aposentado, dedica-se, agora, quase a tempo inteiro à escrita e à investigação sobre o passado que viveu na Marinha Grande e às figuras que o marcaram e marcaram a cidade.
“As Malvadias da Pide”, um tomo sobre a tortura no campo do Tarrafal, a pior prisão política do Estado Novo, será o seu próximo livro que o levou a embrenhar-se nos arquivos da Torre do Tombo. A edição será da editora de Leiria, Hora de Ler.
“Foi uma pesquisa difícil porque não me deram acesso ao que necessitava”, explica o autor. Victor Maria espera ainda uma autorização para consultar documentos, em especial fotografias de cenas de tortura e interrogatório, perpetradas pela PIDE, que considera essenciais para a construção da sua narrativa.
Optimista, acredita que irá conseguir o que pretende em breve. Desde cedo, habituou-se a ter um papel no bolso para que, quando a musa o visitasse, anotasse ideias ou caminhos a trilhar na escrita.
O primeiro livro chegou à estampa em 1978, três anos após ter escrito as primeiras linhas. Saiu-lhe das vísceras e da experiência de vida de exílio iniciada em 1973, em França. Chamou-lhe “A Vida de um Emigrante”.
A militância, na juventude, ensinou-lhe que nem só de pão vive o Homem e que o espírito também precisa de sustento.
Num País onde a mente estava agrilhoada pelo ditado do poder salazarista, não demorou muito até que o jovem Victor Maria, na época a trabalhar com o pai no atelier onde dava forma a singelas e belas obras em cristal, descobrisse as ideias de uma sociedade mais justa, com menos pobreza e miséria, onde se pudesse falar sem receio que “as paredes tivessem ouvidos”.
Começou a participar em reuniões e comícios da Juventude Socialista, a partilhar ideias “perigosas” para o poder e, naturalmente, acabou por se tornar “pessoa de interesse” para a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), o braço repressivo do Estado Novo.
Foi detido três vezes, e, no Aljube e na António Maria Cardoso, sede da PIDE, tentaram incutir-lhe o terror no espírito. Levou “pontapés e bofetadas”, foi humilhado e torturado. Valeulhe a intervenção de um conhecido, o padre Veríssimo que intercedeu por ele.
À terceira vez, já com 18 anos, Victor Maria conta que teve de ir à presença do próprio Marcello Caetano, que era próximo do sacerdote, e jurar com as mãos sobre a Bíblia que “não atentaria contra o regime”.
Conseguiu a libertação e, nesse mesmo dia, foi desafiado a falar num comício. Chegado lá, alertaram-no de que estaria a ser seguido. Não falou e passou a noite às voltas pelos pinhais, até que regressou a casa, madrugada adentro.
Chegado lá, viu luzes acesas. Estranhou. Entrou sem ser visto e deparou-se com os pais à espera para o avisarem que tinham sido alertados por um GNR de que a PIDE viria ao raiar do dia.
Nessa noite, embalou a trouxa e zarpou. Deixou a Marinha Grande e os pais para trás. “Se ficasse, teria ido para o campo da morte, no Tarrafal, sob acusação de ‘discurso contraditório à doutrina do Estado Novo’”, conta.
A passagem da fronteira “a salto” e o caminho que o levaria, pela Espanha do ditador Franco, até França, daria, ela própria, para escrever um romance. Victor Maria fixar-se-ia em Saint Etiénne, onde com amigos, entre eles um padre, criou o jornal Pára, Escuta Olha, onde esclareciam outros emigrantes e exilados dos seus direitos em solo gaulês.
Foi aí que, durante cinco anos, aprofundou o gosto pela escrita. Após o 25 de Abril, diz que se apercebeu rapidamente que o fim da ditadura fora aproveitado por muitos em proveito próprio.
Triste com o cenário, regressou a França e por lá ficou, dedicando-se ao seu negócio e coleccionando escritos e livros publicados.