“Temos energia renovável, do sol e do vento, e temos água salgada”. Para Sérgio Leandro, investigador do MARE, do Politécnico de Leiria e director da Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar, de Peniche, na região temos tudo o que é preciso para transformar água do mar em água doce e usá-la para consumo humano ou na agricultura, se tal for necessário.
Num momento onde 44,8% do território está em estado de seca extrema e o restante em seca severa, a busca de fontes alternativas de água para consumo humano, indústria e agricultura é um tema na ordem do dia. Água resultante de processos mais caros como a dessalinização ou processamento em ETAR com tratamento terciário ou ainda o armazenamento da chuva são algumas das opções.
“As secas são situações que se irão repetir, no actual contexto climático”, alerta Sérgio Leandro, sublinhando a necessidade de pensar e preparar já o futuro. O investigador esteve ligado à instalação de um sistema de dessalinização no Forte de São João Baptista, na ilha da Berlenga Grande, onde a água é utilizada para tudo, das limpezas, às lavagens da loiça e banhos, embora, devido à ausência de sais, não sirva para consumo humano. “Essencialmente, é como se bebêssemos água da chuva, completamente desmineralizada.”
Dando o exemplo da ilha de Porto Santo onde a água provém toda de dessalinização, sendo guardada em grutas, de modo a ser enriquecida com sais minerais essenciais, o docente preconiza um cenário onde as albufeiras do continente poderiam ser cheias com essa água, recarregando mesmo os lençóis freáticos. “Aqui, em Peniche, poder-se-ia criar uma estação de dessalinização que desse apoio à barragem de São Domingos e essa água poderia ser usada na agricultura e nos pomares da região Oeste.”
Sérgio Leandro reconhece, contudo, que o metro cúbico de água produzido com este sistema é ainda oneroso, além de ter eventuais encargos ambientais. “Ainda é uma tecnologia cara, mas com a massificação da utilização o preço desceria”, refere, dando o exemplo de Huelva, em Espanha, onde já tal acontece. Quanto à necessidade de licença-se de estudos de impacto ambiental, “a necessidade fará com que os processos de licenciamento se agilizem”, acredita.
E para consumo humano? Alexandre Tavares, presidente do Conselho de Administração da Águas do Centro Litoral (AdCL), que opera nos concelhos de Ansião, Batalha, Marinha Grande, Ourém e Porto de Mós, garante que, “felizmente, ainda não é uma realidade” na sua área de intervenção.
Aquíferos subterrâneos como o de Leirosa-Monte Real (Mata do Urso), entre a Figueira da Foz, a norte, e o rio Lis, a sul, garantem o abastecimento humano e a qualidade da água.
Optimização e reservatórios antes da dessalinização
Já nos campos do Lis, o administrador-delegado da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Lis (ARBVL) diz que falta passar por várias etapas de racionalização e de optimização de rega, até que a dessalinização seja uma opção. “Vejo com muito interesse essa solução, mas é para outras zonas do País.
Neste momento, há uma seca, mas, por vezes, nós temos mais problemas com água a mais, que é preciso bombear com um grande custo para os agricultores, do que com água a menos”, explica Henrique Damásio. Neste ano de seca, a água não faltou, embora tenha sido necessário impor horas para o seu uso.
Uma requalificação da infra-estrutura de regadio está, actualmente, a ser concluída e isso, além de permitir o fim da acção gravítica para levar a água aos campos, como o transporte passa a ser feito sob pressão, possibilitará a introdução de novas formas de rega optimizada, como o gota-a-gota, a aspersão ou a microaspersão.
“Por outro lado, a dessalinização é cara e consome muita energia. Costumo dizer que, se um israelita nos ouvisse dizer que temos falta de água, provavelmente, rir-se-ia à gargalhada. Eles irrigam e plantam no deserto de Neguev, após transportar a água durante 800 quilómetros. Regam com gota-a-gota e reutilizam a água.”
Para Henrique Damásio, neste momento, é importante traçar um cenário futuro com menos água e criar reservatórios para o excesso de Inverno. Guardar-se-ia em cisternas o que cai nos telhados e ruas, em vez de perpetuar sistemas, como o de Leiria, onde esgotos e águas pluviais se misturam, provocam avarias nas ETAR e inundações.
“Na Grécia, as chuvas são guardadas em pequenos reservatórios para que a água se infiltre no solo e recarregue os aquíferos. Antigamente, as cisternas eram indispensáveis. É preciso criar muitas bacias de retenção, como aquela que a Câmara de Leiria exigiu na construção do novo jardim junto ao rio Lena”, exemplifica.
Água da ETAR para rega presa por burocracia
Para poupar a conta ao fim do mês e fazer um uso mais racional da água, há cada vez mais pessoas a defender a reformulação das canalizações domésticas e a utilização de “águas cinzentas”, ou seja, a componente não sanitária das águas residuais, correspondente a águas provenientes de lavatórios, duches e lavagens de roupa.
Afinal, que sentido faz descarregar o autoclismo com vários litros de água que poderia ser bebida? Mas há quem também defenda, na mesma lógica, que o efluente tratado pelas Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), com etapa terciária – desinfecção -, deve ser utilizado na rega, limpeza e uso industrial.
No concelho de Leiria, apenas a ETAR do Coimbrão conta com a tecnologia, que reduz substancialmente a carga orgânica presente. Seria, pois, possível utilizar esta água na agricultura, em vez de a devolver ao meio ambiente? Os regantes do Vale do Lis dizem que sim e que a solução ainda não avançou, essencialmente, por burocracia.
“Não sei por que não se faz. É possível, desde que haja análises, para certificar o cumprimento dos parâmetros necessários para a utilização em rega”, garante Uziel Carvalho, explicando que é possível reutilizar toda a água, “mesmo a reciclada”, e usar o solo como filtro. O gerente da Germiplanta, empresa agrícola sediada na freguesia de Monte Redondo (Leiria), adianta sentir “falta de diálogo” entre organismos e associações. “Porque, como está feito o sistema, não é fácil de usar para a rega.”
“O desafio do Ministério do Ambiente é que, pelo menos, 40% dessa água seja reutilizada na agricultura ou rega de espaços públicos, por exemplo”, declara Alexandre Tavares. O presidente da AdCL, entidade que gere a ETAR do Coimbrão, refere que, “em conjunto com a AdP Valor, do Grupo Águas de Portugal, está-se a estudar um modelo de negócio para responder aos diferentes usos e utilizadores”, procurando empresas, autarquias e associações interessadas.
A unidade do Coimbrão trata esgotos domésticos e suinícolas e líquidos provenientes dos aterros da Valorlis e da Resilei, estando dimensionada para tratar 38 mil metros cúbicos/dia de efluente doméstico e industrial.
Letargia processual potencia efeitos da seca
Em 2001, o Governo realizou um estudo para a reconversão do sistema de regadio do Vale do Lis, onde já se previa a ligação à ETAR do Coimbrão e a utilização de efluente para rega. A obra foi, por fim, iniciada em 2021 e concluída na quase totalidade e entregue em Agosto, contudo, a ligação não foi feita.
“Ninguém mais do que nós tem interesse em usar as águas residuais tratadas”, assegura Henrique Damásio. O administrador-delegado ARBVL conta, contudo, que o processo está preso por burocracia e algum investimento comunitário.
O responsável refere que o Ministério da Agricultura chegou a informar a ARBVL da intenção da AdCL de cobrar uma quantia pelo metro cúbico de efluente que esta, até agora, rejeita, sem qualquer compensação, no meio ambiente. Mais recentemente, a AdCL contactou directamente a ARBVL para que se estabelecesse uma cooperação, “alegando que a norma comunitária havia sido alterada e que já não fazia sentido o pedido de pagamento.”
Poder-se-ia pensar que, assim, a entrega à ARBVL, há duas semanas, da empreitada de reconversão do sistema de regadio, cujo plano teve início há 21 anos, teria acontecido sem mais entraves e que o efluente tratado estaria a ser utilizado, especialmente, num ano marcado pela pior seca de que há memória. Mas não.
A qualidade desta água tratada tem de ser validada por análises, que a AdCL não é obrigada a fazer, apesar de a pureza biológica necessária ser diferente, caso se trate de rega de hortícolas ou de forragens. Além disso, mesmo num período de seca, onde é urgente dar resposta aos agricultores, a burocracia fez das suas, pois são necessárias novas autorizações para construir a conduta que ligará a saída da ETAR à entrada do sistema dos regantes do Lis.
“Só os pareceres para esse trabalho demoram ano e meio a fazer, que é mais do que o tempo que a totalidade da obra de reconversão do sistema de regadio do Lis demorou a ser feita!”, resume o administrador-delegado. Ultrapassado este obstáculo, ainda será preciso assegurar apoios comunitários para a construção da conduta.