Poucas vezes sucede estar o povo – estarmos nós, portanto – em tal experiência de democracia e de liberdade, que nem se dá conta do real significado e da verdadeira dimensão que essas palavras representam.
É quando elas se materializam de uma forma tão simples e natural, tão sem pompa institucional e alarido, que tudo acontece conforme sempre deveria acontecer na forma de vida que a grande maioria deseja.
Falo do que tantos, e tão bem, já falaram. Falo do Há Música na Cidade que voltou a acontecer, pela sexta vez, depois de se ter silenciado durante quatro anos contra a vontade de todos os que o aguardam e o vivem.
Aconteceu, outra vez, sem discursos de circunstância e sem figuras a serem mais gradas do que todas as figuras que enchem as ruas, as praças, os becos, os pátios e os terraços; uns a mostrar o que sabem fazer, e o que criaram, outros a assistir à criação, mas criando também, porque o burburinho, o vaivém, as palmas, a admiração, o contentamento, e a impossibilidade de aquietar os pés, são manifestações de pensamentos e emoções recriadores da cidade, e transformadores da forma como ela pode ser vivida.
Por um dia que seja, a cidade é como devia ser: toda, de nós todos. Um nosso lugar de encontro. Um espaço público onde o outro, seja ele quem for, é imprescindível para que se faça a festa.
E a festa começou devagar, com o chão das ruas ensolaradas liberto de carros convidando à apropriação do que habitualmente não é nosso, e trazendo uma formidável largueza e um inesperado silêncio aos olhos e aos ouvidos.
E com esse maravilhoso silêncio das pedras, a cidade abriu-se às vozes e aos passos, e permitiu-nos um olhar diferente sobre si, e sobre nós, que a habitamos.
Aos poucos, vindos de muitos lados, fomos chegando, [LER_MAIS] curiosos, disponíveis para sermos surpreendidos, ansiosos pelos muitos encontros e absolutamente certos de que ela se abria assim para que nela pudéssemos ser absolutamente livres no acto de escolher, de fruir, e de manifestar emoções.
Tomámos a cidade por entre o som de violas, de violinos, de pandeiretas e de acordeões; de bombos, de pianos, de baterias, e de baixos; do som do acústico e do electrónico, do fado, das canções de filmes, e das populares; ergueram-se batutas, harmonizaram-se vozes, marchou-se ao compasso, e dançou-se.
No mesmo espaço, juntaram-se as gerações, confluíram as músicas, e misturaram-se os gostos, num enorme respeito por tudo o que acontecia.
O respeito, e o orgulho, que só acontecem quando alguma coisa é sentida como realmente nossa. Sei da vontade de fazer a festa mais vezes.
Sei da dificuldade de a construir. E sei da importância de não a deixar morrer outra vez porque cultura, a verdadeira, é quando cada alma se agita ao compasso desse pulsar maior que é sermos todos assim, tão livres, tão felizes, e tão alimentados, de vez em quando, com o melhor que uns têm para dar e os outros sabem como receber.
*Professora de dança