Sou ainda de um tempo e de um espaço em que ir ao cinema era um hábito raro.
A geografia e a história privada determinaram que nas primeiras duas décadas de vida visse menos cinema do que gostaria.
Mas na intimidade da sala escura encontrei desde cedo esse diálogo insondável que nos aproxima das personagens, dos desempenhos e do que nos filmes nos inaugura um olhar novo sobre os dias, sobre nós e os outros.
Depois de um feliz frenesim cinéfilo nos tempos de universidade, que me acolheu a timidez e os receios da grande cidade, vivo agora num tempo e num espaço em que, a par do encerramento das salas que quase foram a minha segunda casa, o cinema se vê em ambiente doméstico.
O mundo mudou, a cronologia mudou e já nem as estreias se fazem nas (poucas) salas de cinema que ainda programam o seu cartaz com filmografias que dizem o mundo com uma linguagem onde o autor e o olhar se distinguem e nos acrescentam a mundivisão.
Ter aprendido a gostar de cinema noutro tempo e noutro espaço continua, por isso, a conduzir-me à sala escura, ao ritual da escolha dos lugares onde a miopia não me trai e ao anonimato que me perdoa e esconde as razões do riso, da comoção, o abandono à banda sonora, ao movimento de um actor ou à fúria quando o olhar do realizador me decepciona.
Dor e Glória, do realizador espanhol Pedro Almodóvar, foi o mais recente filme que vi enterrada na cadeira da pequena sala de cinema onde ainda estava em cartaz.
A história parece resumir-se ao relato, talvez autobiográfico, do que aparentemente é o fim da carreira de um realizador de cinema de sucesso frustrado por não conseguir voltar a filmar e entregue às maleitas do corpo e da alma que o atormentam.
A dor física que se sobrepõe a tudo, lhe retira o [LER_MAIS] fulgor criativo, o horizonte de futuro e o empurra para a inércia; e os grandes tormentos da alma – as decepções, as perdas, as traições, a solidão, a vergonha, a necessidade de perdão e de ajuste de contas com a sua vida e com os seus outros.
Recorrendo a um exercício de coincidências, Almodóvar conduz(-se) através de um desempenho magistral de Antonio Banderas, a uma espécie de reencontro com esse passado e com as pessoas que o habitaram – um actor, uma mãe dedicada e um amor maior – “ajudado” por um recente fascínio pelo torpor da heroína. E é nesse mergulho interior que renasce criativamente.
O tempo, essa grande voz, e o que faz das personagens com que Salvador Mallo (ou Pedro Almodóvar ou Antonio Banderas) se reencontra no presente traz-lhe a dimensão da ternura e uma nova hipótese de futuro, momentos que Pedro Almodóvar filma com uma delicadeza e uma economia emocional perfeitas.
Num monólogo belíssimo representado pelo actor que o traiu no passado e com o qual reata relações para representar um texto que não tem coragem para assumir como seu, Salvador Mallo confessa que o sentimento que o unia ao seu amor maior não fora suficiente para o salvar da droga e para o manter junto a si e que afinal foram outros a salvá-lo, e que a ele, o que salvara da dor da sua perda, fora afinal o cinema.
Talvez como a Pedro Almodóvar neste exercício belíssimo, quiçá íntimo, que nos deu a testemunhar.
Talvez como a nós, por poder continuar a vê-lo anonimamente numa sala escura que nos esconde as razões do riso e da comoção, e que nos projecta na tela uma nova hipótese de futuro, ainda que crepuscular.
*Assessora de imprensa