Estamos no céu. Numa espécie de loja do cidadão, a funcionária de serviço discute com uma estagiária sobre os problemas e os desafios de se morrer e ir para o céu.
Entretanto a repartição abre ao público e os utentes vão desfilando com os seus requerimentos e reclamações.
Há uma cantora que pretende organizar um arraial ou uma jovem que se queixa de ter morrido demasiado cedo; preenchem os formulários adequados e aguardam.
Depois surge uma sequestradora. Transforma todos os presentes em reféns e exige falar com deus. É-lhe explicado que se quer falar com deus, basta rezar.
Responde que a reza é sempre um monólogo e ela pretende dialogar; que o problema do mundo (e do céu) é que todos falam mas ninguém ouve.
A tensão cresce, a confusão instala-se, a discussão generaliza-se. Como sempre acontece nos momentos menos oportunos, surge uma inspecção.
A desordem aumenta, o conflito é permanente. E então surge finalmente deus, acompanhado da secretária. Entre discussões e reflexões, cantorias e piadas, tensões e relaxamentos, os diferentes monólogos vão-se tentando aproximar e conciliar de modo a formarem diálogos.
Todos se revelam imperfeitos, todos se sentem incompletos, todos se queixam; porque falta sempre qualquer coisa. Este é um breve resumo da peça Falta aqui qualquer coisa, que escrevi para O Nariz – Teatro de Grupo.
Está a ser ensaiada e deverá estrear no início do próximo ano; por enquanto, haverá uma leitura pública no dia 11 de Outubro (22 horas, Espaço O Nariz).
Tal como acontecera antes, com a peça Libelinhas, deslumbra-me a magia de alguém pegar num texto que escrevi e lhe dar vida, corpo e som, [LER_MAIS] intensidade e espessura, riso e cor, movimento, humanidade.
Há uma generosidade nestas pessoas que me comove sempre; durante algumas horas por semana, suspendem os seus problemas, as suas dores, os seus prazeres, as suas prioridades; e apesar das diferenças, unem-se para criar algo comum, algo que contém um pouco da sua individualidade e da sua personalidade, da sua alma.
No início há apenas palavras escritas; a arte de encenador e actores está em transformar essas palavras num espelho vivo, onde cada espectador se pode encontrar.
E espera-se que cada espectador, tal como a sequestradora da peça, busque diálogos e não se resigne a monólogos; que perante a peça, encontre uma forma de interagir com aquelas personagens, com aquelas ideias, com aqueles sentimentos; que não se limite a escutar, ver, sentir; mas que responda, que reaja, que se manifeste.
Que ria. Que dialogue. Porque talvez nos falte sempre qualquer coisa, a todos; e isso une-nos: a busca, a necessidade de compreender, de pertencer. Talvez o conforto seja nosso inimigo; porque enquanto nos falta alguma coisa, não nos resignamos a parar.
É isso que nos desassossega e inquieta; e talvez seja isso que nos faz mover e avançar. Haverá sempre quem escreva ou represente, quem leia ou assista a espectáculos teatrais; quem procure construir diálogos. Porque falta sempre qualquer coisa; e ainda bem.
*Escritor