A história que aqui vou recontar, encontrei-a em Richard Sennett, na obra que dedicou ao trabalho manual, The Craftsman (2008). Neste livro, Sennett, que foi aluno de Hanna Arendt, retoma preocupações da sua antiga grande professora (“um bom professor difunde uma explicação satisfatória, enquanto um grande professor origina inquietação, transmite intranquilidade, convida a pensar”), nomeadamente quanto aos limites da criação e uso de tecnologias.
O resultado desta discussão intelectual é um poderoso ensaio, recheado de interpretações estimulantes.
Sennett propõe-se resgatar da marginalização para que foi remetida pelas ciências sociais a cultura material. Que aprendemos sobre nós próprios através do processo de produzir coisas concretas?
Se tiramos prazer desse acto de fazer, se nos preocupamos com as qualidades dessas coisas, é porque afinal podem gerar valores. Talvez só possamos aspirar a uma vida material mais humana se compreendermos melhor a produção das coisas.
Vamos agora à história: a construção do edifício do Museu Guggenheim em Bilbau, por Frank Gehry.
As autoridades encararam a construção deste equipamento público como uma forma de inverter a crise da cidade portuária.
Escolheram Gehry, um arquitecto conhecido pela perspectiva escultórica dos seus trabalhos, desafiando-o a conceber a implantação de um edifício de elevada volumetria próximo de uma linha de água, que não se limitasse a uma caixa de vidro e aço.
Gehry esculpia edifícios com recurso a uma liga de chumbo e cobre, e assim concebeu uma estrutura acolchoada que desfocasse a luz e esbatesse a massa do edifício. Mas esbarrou contra a proibição espanhola desse material, [LER_MAIS] considerado tóxico.
Sennett sugere que os patrocinadores da construção talvez pudessem ter experimentado a via da excepção (ou da corrupção) para tornear o problema, mas Gehry preferiu o caminho das dificuldades.
O campo das dificuldades significou, neste caso, não apenas encontrar um material alternativo, mas sobretudo, um novo processo de o obter.
Esse material alternativo era o titânio, que, nos anos 1980, nunca tinha sido usado em edifícios (era usado na condução de aviões). Acontece que a obtenção das lâminas de titânio resultava num produto muito caro, incomportável para o orçamento do projecto.
Gehry visitou a fábrica e colocou a possibilidade de uma nova maquinaria, inspirada na construção de automóveis, permitir a redução dos custos.
O desenvolvimento dessa investigação viria a traduzir-se na produção de lâminas mais delgadas, conferindo ao edifício movimento pressionado pelo vento.
Finalmente, a reflexão sobre todo o processo colocou o acento tónico na estabilidade.
Gehry não teve dúvidas: o seu Guggenheim podia ser mais estável, pois esta não estava associada nem à grossura das lâminas nem à rigidez do material.
Gehry agiu como alguém que começa por criar dificuldades, e, nesse sentido, ele fez o percurso do artesão. Criar dificuldades é afinal questionar a natureza da solidez.
Por outras palavras, suspeitar que as coisas nem sempre são o que parecem.
Professor coordenador jubilado do Politécnico de Leiria