Do dia que muito lentamente se foi deixando terminar, a noite cresceu tépida e silenciosa, e da Lua ancorada fora do alcance da vista emana uma luz pálida e nevoenta onde se recorta a negro a sombra das árvores.
Ouvem-se os cães à distância, e quase mais nada, como se este recanto da cidade fosse este mesmo lugar, mas num outro tempo. As casas, as ruas, as árvores, os muros e os candeeiros, ganham a impressionante presença que nasce da quietude, do não haver antes nem depois, do simples estar, sem princípio nem fim.
Da janela, feita moldura para a imensa copa da árvore que quase a toca, carregada de folhas que imperceptivelmente se agitam à passagem do ar, o mundo deixa-se olhar com a indiferença e a tranquilidade do que não precisa de ser olhado para plenamente existir.
Respirar. Deixar que a calma chegue. Distender o corpo. Perceber o sossego. Procurar a lentidão. Entender como o Tempo medido de outra forma possa ser a eternidade. Deixar pousar na pele um longo e suave arrepio morno causado pelo aliviar da pressa, do compromisso, do prazo a terminar, do ter que ser.
Estancar o eu que faz, e fazer lugar para o eu que é. Um gato sobe vagarosamente a rua, e pára, e recomeça depois a subi-la.
Há-de voltar a parar, imóvel, no meio da rua, olhando atentamente o escuro sem se importar com o vulto que se desenha ao fundo e se aproxima num passo lento e seguro, abandonado ao prazer do caminho. O prazer do caminho. O saber para onde caminhar. O não precisar sequer de saber. O porquê de ir. [LER_MAIS] A importância de ficar.
Um carro passou no lugar exacto de onde o gato fugiu, o rapaz desapareceu na esquina e um pedaço de vento súbito arrancou um marulhar sobressaltado às árvores. Logo depois, o silêncio e a imobilidade aparente das coisas voltaram. E o meu passar do tempo abranda, quase pára também.
Percebo a suavíssima tepidez da respiração no lábio, o movimento espaçado das pálpebras, a subtil mudança de peso de um, para o outro pé, a ligeira pressão do parapeito contra os braços, e a névoa fina que nasce no vidro ao aproximar da boca.
Sem motivo algum, só porque sim, a ponta da unha desliza sem destino num movimento redondo que embala primeiro a mão, depois o braço, e inventa um caminho sinuoso, que se cruzará com outro, outro depois, e mais outro ainda, até ali ficar tecido um mar de filigrana transparente, onde navegam as folhas escuras iluminadas pelo candeeiro.
Parece possível que tudo possa ficar assim, recolhido no silêncio, suspenso do tempo, tornada rala, enfim, a pressa dos dias, esquecido o impulso de continuar fazendo uma coisa, e a que vier a seguir da que virá depois, sossegado que fique o espírito da inquietação de encontrar respostas para todas as perguntas.
Dar mais tempo ao Tempo. Para depois poder recomeçar de um outro modo.
*Professora de dança