Todos os dias pela manhã o Homem Invisível fecha a porta do prédio com delicadeza e segue em direcção ao rio.
Caminha pela margem com passos vagarosos e serenos, enquanto espreita o percurso irrequieto de algum peixe descolorido e minúsculo ou de um pato vaidoso; por vezes, apanha alguma folha de árvore caída no chão e guarda-a no bolso.
É raro falar com alguém mas sorri a todas as pessoas que estejam acompanhadas por cães; também olha as crianças, talvez desejando que alguma delas fosse sua neta e lhe fizesse perguntas sobre árvores a as suas folhas, sobre o rio que desliza sempre e sempre e sempre («E nunca se cansa, avô?»).
Mas não tem netos nem filhos e nenhuma das crianças com quem se cruza durante o passeio matinal o olha, fazendo-o sentir-se invisível; ou inexistente.
Avança sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo.
E tem: ninguém o espera em lado nenhum.
A vida trouxera-lhe muito do que desejara e tudo o resto – tudo o que falta, tudo o que não passará de desejo e sonho e ilusão, tudo o que ainda se mantém fechado na escuridão secreta da sua alma ou do seu espírito – já não acontecerá.
Apesar da invisibilidade, por vezes reparam nele. Porque há algo misterioso no seu comportamento: em determinado momento, abandona o passeio e desce até à beira da água; baixa-se com dificuldade e retira do mesmo bolso onde guarda as folhas de árvore que vai recolhendo uma pequena garrafa de plástico, que enche com água do rio.
Ergue-se com esforço, regressa ao passeio; atravessa a ponte e faz o mesmo percurso de antes mas pela margem oposta.
Afinal, talvez não seja [LER_MAIS] completamente invisível, porque há quem veja, quem abane a cabeça, quem sorria. E também é observado o que faz de seguida.
Quem quiser olhar, poderá vê-lo descer uma vez mais a margem do rio.
Bastante longe do local onde o fez antes e na margem oposta mas com a mesma lentidão, a mesma serenidade, a mesma indiferença em relação ao mundo.
Tal como antes, aproximase o máximo possível da água e baixa-se, com esforço mas sem queixume; abre a garrafa e verte lentamente a água no rio, o som desse splash misturando-se com os muitos splashes causados pela ondulação natural.
Olha como se conseguisse distinguir a água que acabara de devolver e acompanhasse o seu percurso; como se se despedisse.
Depois, devolve a garrafa ao bolso e à companhia das folhas de árvore, trepa a margem, abandona a zona do rio. E regressa a casa, fechando a porta do prédio com delicadeza. Todos os dias a mesma rotina, observada por quem o desejar; mas nunca questionada.
Ninguém se aproxima para perguntar o porquê deste hábito, ninguém demonstra interesse ou curiosidade. Ninguém pergunta o óbvio: «Desculpe, mas por que motivo enche a sua garrafinhacom água e depois a volta a despejar no rio?»
E talvez seja apenas por isso que o Homem Invisível continua a cumprir, manhã após manhã, a sua rotina.
À espera que alguém pergunte porquê.
Escritor