Não podia ter começado pior a minha relação com aquele professor. Creio que foi logo na primeira aula que ele se apercebeu da minha completa inaptidão, para as matéria que lhe incumbia leccionar, e decidiu logo ali torná-la irremediável.
Sem piedade, ordenou que me retirasse, oferecendo-se uma dispensa “ad aeternum” da frequência da sua disciplina. Falo do padre Renato, professor de Canto Coral. Cumpri o humilhante degredo até hoje.
Nunca mais ousei, em público ou em privado, entoar fosse o que fosse que se assemelhasse a uma canção.
Mas o padre Renato, figura imponente e desconcertante aos olhos de um pré-adolescente, diariamente transplantado do mundo rural para a cidade, deve ter-se apercebido do impacto devastador da sua decisão.
Era um homem de reacções bruscas, que detestava ser interrompido ou perturbado nos seus momentos de concentração máxima – como a regência de um coro –, e que podia oscilar em poucos minutos (como pude testemunhar, bem mais tarde, quando foi meu professor de latim) entre uma crispação iracunda e o mais ingénuo e delicioso gesto de ternura e cavalheirismo.
De modo que, uma semana após o incidente — que me conduziu a um ininterrupto mutismo canoro — à saída do colégio, a meio da tarde daquele mês de Outubro, tinha o padre Renato à minha espera.
De pé, ao lado da lambreta onde se deslocava nas seus diligências paroquiais, com o capacete em cima do assento. – Estava aqui a pensar que lá no Carvalhal Benfeito, donde tu vens, há um belo respigo à nossa espera. Senta-te aí atrás.
Olhei-o, estupefacto. Não tanto pela possibilidade [LER_MAIS] de andar de mota – tinha um tio que me introduzira nessa experiência – mas pelo convite, vindo de um professor. E intrigado: nunca ouvira aquela palavra, respigo.
Mas não questionei – nem o padre Renato me deu oportunidade de o fazer – aquela proposta imperativa.
O padre Renato revelou-se um condutor cuidadoso, evitando com acerto as depressões e lombas da estrada de macadame da Benedita. Já perto do Carvalhal, no fim de uma curva que permitia abarcar a pequena aldeia desenhada no vale à esquerda, o padre Renato fez sinal de que ia parar.
Em frente avistava-se um chão de vinha. O sol do fim da tarde deixava perceber a mudança de cor das parras, entre amarelos e vermelhos. Trotei, curioso, atrás do professor, que em três passadas galgou a valeta e a pequena ribanceira, iniciando um périplo pelo campo.
Aqui e ali, debruçava-se sobre uma videira, com as mãos afastava as folhas e apanhava um, dois três bagos que tinham escapado da recente vindima. Era então aquilo o respigo!
O padre Renato trincava devagarinho os bagos que levara à boca, saboreava e comentava: — Esta é Fernão Pires. Pequenina, mas deliciosa. E com o sol que apanhou depois da vindima, fez-se ainda mais doce.
Andar ao respigo era uma reconstituição da vida de cada uma das videiras, das suas castas, e da forma como os homens delas tinham cuidado.
Escrevo esta crónica no dia em que se encerra formalmente o meu tempo de professor de história. De algum modo, um exercício de respigador.
*Docente do Instituto Politécnico de Leiria