Chegou de cabeça baixa e mochila às costas, mas o peso nos ombros vinha de outro fardo. Na verdade, carregava quase sessenta anos de uma vida qualquer que em algum momento ou bifurcação a levou a fazer visitas guiadas ao Vaticano.
Da fé que teve ou que tem, nada sei. Mas dava para ver que já não esperava grandes revelações há muito tempo. Dos anos 60, trouxe os óculos da Janis Joplin e o Woodstock inteiro embebido na alma.
O inglês para turista ver todo atrapalhado pelo vinho e pela pronúncia italiana. Conseguiu abrir metade dos olhos para se apresentar: “Ai will bi your guide tudei.”
Não sei quantos segundos demorei a processar o significado divino de me passear pela sede católica mundial conduzida por uma italiana com os copos.
No fundo, funcionou como em qualquer doutrina. Antes que me questionasse muito, um grito sério de ordem: “Andiámo!”.
Como numa passagem bíblica, levantei-me e andei. Não vos sei explicar o comando matriarcal que aquele verbo convocava.
Do Vaticano, não fiquei a saber mais do que sabia. A ela, pouco lhe interessava. Mas a cada paragem aleatória pelos museus, – que ela própria definia, algures a falhar um símbolo da história da arte ocidental – o resto daquela energia existencial toda investida numa única palavra: “Andiámo!”. [LER_MAIS] E eu andava.
Pelo caminho, não conseguia deixar de pensar que a vida não deve ser muito diferente disto. Corredores infinitos de pensamento petrificado em mármore, estátuas e pinturas de modos de vida mais aceites, mais enquadrados. Modos de ser segundo uma escola, uma corrente. Uma moral.
Pelo meio, alguém suficientemente louco ou devidamente entorpecido para dizer “Andiámo!”. Vamos!
Algures a falhar um símbolo do pensamento ocidental, a certeza de que há muitas outras formas de existir pelo meio.
Talvez nada seja muito mais importante do que o olhar da minha guia embriagada ao entrar na Capela Sistina: “De um lado tens o bem. Do outro tens o mal. Não é mais do que isto. Andiámo!”
*Pessoa criadora de conteúdos