Tenho o privilégio de ter uma amiga que considero inteligente, culta, atenta, sensível, professora por vocação. É uma Mulher que merece o trato escrito em maiúscula. É, sobretudo, uma esteta.
Mesmo que a propósito de uma qualquer banalidade procura sempre o belo como um bem superior, na forma como o diz, nas metáforas que usa. Amiúde me envia magníficas imagens de telas ou ilustrações a parafrasear um pensamento, o que me faz pensar dela que se serve da pintura como representação simbólica da vida.
Tem sempre o cuidado de me ensinar a arte como metáfora para aprender a ler o mundo de outro modo. Mas não é um privilégio meu, que esta atitude didática se repete nas suas aulas e com quem priva.
Há dias contou-me um episódio magnífico, que fez o favor de me autorizar a partilhar convosco, e que transcrevo tal como me disse: “a rapariga da frutaria aqui da Quinta do Alçada ontem olhou para o meu saco das compras e exclamou ‘Ai que saco tão lindo!’
É uma reprodução do ‘Passeio de Domingo’ de Seurat. Senti-me altamente fantástica e erudita na Quinta do Alçada, ao que lhe respondi, ‘Mas eu digo-lhe onde se compram…’. Não me deixou acabar a frase e disse, ´É na Livraria Arquivo, eu sei. Tenho dois A noite Estrelada, de Van Gogh, e O Grito, de Munch.
“Ia eu adivinhar que a rapariga era instruída ao balcão da frutaria!”
Convenhamos, é uma bela história! Mas é sobretudo um daqueles pequenos episódios que dá que pensar. É suposto vivermos num país com um razoável nível de vida, muito aquém de outros mas mesmo assim dentro dos limites do suportável.
Garantidas as necessidades básicas para a maioria da população, naturalmente, e segundo a hierarquia das necessidades de Maslow, surge a vontade de acesso à cultura enquanto realização pessoal.
Acontece vivermos um tempo conturbado no que à cultura diz respeito, ou melhor dizendo, no que à definição de cultura diz respeito. [LER_MAIS] É com investimento que se criam condições para o crescimento, e este, quando devidamente planeado, potencia o desenvolvimento.
Assim, a questão que se coloca a montante é a de saber onde se está a investir e quem são os investidores da cultura?
Naturalmente não me estou a referir aos (poucos) mecenas, que esses têm critérios precisos de exigência para os seus investimentos, mas sim aos investidores diretos, aos promotores imediatos de eventos onde incluo, a título de exemplo, autarcas e alguns programadores. Que critérios presidem às suas escolhas quando investem na área da cultura?
A experiência tem-nos ensinado que há um vazio de ideias quanto a esses critérios de escolha. Amiúde surgem iniciativas desgarradas, sem continuidade, sem um conceito unificador que leve ao desenvolvimento do gosto e da estética.
Por vezes, penso que quem de direito sofre de uma espécie de síndrome de Pilatos, isto é, distribuem-se prebendas a quantos oportunistas estendem a mão.
Agrada-se a todos, ninguém fica de fora, mesmo que com isso de delapidem recursos e se percam oportunidades. Quantificam-se eventos e espetadores, aprecia-se o crescimento mesmo quando este contraria o desenvolvimento.
Que eu saiba, a minha amiga nunca ilustrou a tristeza com a mais que conhecida gravura do Menino com Lágrima, e tão fácil seria que a rapariga da frutaria se ficasse por aí.
Mas não, a rapariga da frutaria surpreendeu, cativou, elevou a sua condição por entre os caixotes de fruta. E por aqui me fico, que vou à Quinta do Alçada comprar maçãs.
Devem estar expostas com a elegância de uma natureza morta pintada por um mestre.
*Psicólogo clínico
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990